Não sinto raiva


Saio, bato a porta da rua, prendo o dedo no batente.
Esqueci de tirar a mão antes. Nunca tinha me acontecido, que me lembre. Muitas vezes dou com manchas roxas nos braços, nas pernas, até no peito, e vejo que me estrepei com as coisas do mundo na noite anterior. O mundo tá atulhado de badulaques que só servem pra se vingar da gente.
Bem o indicador. Estico, fico olhando, latejando pra caréleo. (Ainda com laivos daquele papo íntimo com o Fernando.)
Abençoada dor física. Que me faz esquecer das outras. Lateje até eu morrer, fura-bolo duma figa. Me faça ver as estrelas que o ar imundo de Sampeia há dezenas de anos esconde dos meus olhos.
Uma época joguei futebol, dos oito aos doze, ainda não tinha escutado os Concertos de Brandenburgo. Nas férias saía cedinho, voltava para almoçar, saía de novo, chegava em casa às sete da noite.
Moído.
Que gostosura de moagem.
Nunca mais pude sentir aquela paz. Era uma paz de espírito mancomunada a uma exaustão muscular que só os guerreiros de Sparta conheceram. Kundera gostaria de me entrevistar, se tomasse conhecimento das minhas peripécias. Me lembro e sou capaz de compreender os vocacionados para o atletismo, por quem em geral devoto desprezo soberbo. Não somos feitos para pensar. Não somos feitos para duvidar. Somos feitos para celebrar a existência. Se possível, agradecer pelas dádivas. Se não for possível, que algo ou alguém nos dê a misericórdia de dizer chega.