Senta na sala de espera
e espera. Sempre que se consulta parece ficar perigosamente próximo da morte.
Folheia uma a uma as revistas da mesinha
de centro da sala. Passeia olhos nervosos duma página a outra sem poder prestar
atenção em palavras. Sente-se debilitado. Não é de hoje. Nem de ontem. Nasceu
assim.
Errado. Se tem uma certeza na vida,
nasceu errado. Iniciou a contragosto a longa viagem – da qual não pode escapar.
Quer voltar a cada instante. Alternativas, as têm, elétricas, saltando sob o
ímpeto de cancelar a passagem, sob o ímpeto de ficar parado no banco obcecado
pela ideia de mudar o itinerário. Será hora de escolher outro destino? Será
hora de ser o passageiro ao lado.
Quem nasce errado precisa trabalhar
dobrado. Ainda no berço, desconfia de ter pela frente uma epopeia. Epopeiazona
magnífica feita de cachos, pelos e folhas de bananeira, que vai destacando à
medida que os dias passam.
Quem nasce errado e tem pela frente a epopeia,
não sabe fazer outra coisa – tudo se limita a pensar na direção a tomar.
Enquanto lá fora a paisagem passa velozmente, deixando na janela aqueles frisos
de desenho animado, tem os pensamentos no sentido que certamente será avistado
depois da próxima curva. O que importa é o talvez do dia seguinte.
Quem nasce errado precisa suspeitar de
palavras, dar tino de frases. Sempre mantendo a guarda. Não pode ser frouxo,
que não sabe que tem à frente.
Se Zé conseguisse limpar as nuvens que
lhe ensombream o cérebro, perceberia que mora na Absoluta Caverna.
Larga uma revista, apanha outra, abre. Às
vezes tudo em maiúscula, às vezes, em minúscula, outras, letrinhas e letronas
intercaladas. Algo sobre a rainha da Inglaterra. Não-sei-quê Westminster.
Queria um nome melhor que Zé. Zé demais por aí. Em tudo que é lado, jeito e
cor. Se o pai tivesse batizado Westminster hoje poderia ser presidente. Melhor,
delegado. Presidente acaba se matando. Delegado pode matar os outros e se dar
bem.
Vargas é estátua de granito-chumbo
gigantesca na infância de Zé, pesada que aderna o barco do passado prum lado.
Não saiu da cabeça. Como pode um presidente se matar? Quem tem tudo, tem tudo,
ora. Só quer se matar quem não tem nada. Ou tem pouco. Ou tem o que não quer e
não o que quer. Ou não tem o que quer e tem o que não quer.
Zé lê sem se concentrar. A atenção navega
em retrocesso contínuo a um bem-estar que não existe e nunca existiu. Para usar
os sentidos, que teimam em negar serviço, precisa deter as atividades vitais e
esperar até que tudo baixe feito uma poeira sobre um chão estéril em que retoma
o controle dos sentidos mas de que nada pode renascer, pois agora é um deserto
de nervos expostos.
Tem por dentro um rio ladeado de placas
infinitas indicando direita esquerda direita esquerda, a que vai obedecendo
sempre ao contrário. Ocasionalmente surge um buraco negro, insondável. Pensa em
seguir em frente, mas uma força irresistível o empurra e ele despenca, agarrando-se
a uma âncora que o leva de volta à tona em vez de afundá-lo. E a correnteza
recomeça.
Vira uma página. Lê penosamente algumas
palavras. Não que seja burro. Mas não sabe se deve acreditar nas notícias. Nem
analfabeto. Algarismos, conhece bem. O Prêmio Nobel organizou uma comissão de
sábios para investigar o fenômeno. Ainda bem não sou fenômeno, poderia pensar,
se pensasse.
Se tivesse pensado alguma coisa na vida,
Zé saberia que nasceu para desenvolver incertezas e viver impossibilidades.
Saberia que, talvez por isso, sente tamanha indisposição e falta de energia.
Tem dia se enxerga fragmentado, quase pode ver as partículas de que é formado.
Tem noite se sonha abaixado no chão apanhando fragmentos. Arruma-os de lado,
tentando compor uma forma que faça sentido. Parece ficar dias e dias entretido
na tarefa, procurando enxergar algo que o lembre de si mesmo, mas não consegue
ver senão imagens inúteis e exasperantes como pombas, borboletas e nuvens que
nunca dizem nada. Se soubesse pensar, Zé pensaria: “meu sentido! Preciso achar
meu sentido!”
Outras noites sonha que está olhando num
microscópio. Aparelho tão gigantesco quanto a estátua de Vargas, longo de
deixar a extremidade traseira fora da vista. É microscópio eletrônico, diz a
revista que tem nas mãos. Capaz de ampliar as coisas cinco trilhões de vezes. “É
o que preciso!”, diria a si mesmo se soubesse monologar.
Zé bota o olhinho aflito e sequioso de
verdade na lente do aparelho e olha. Vê um sujeito olhando num microscópio. O
sujeito, percebendo que está sendo observado, volta seu microscópio na direção
de Zé. Um intenso facho de luz é imediatamente lançado do outro microscópio
contra o microscópio de Zé, ofuscando seu olhinho aflito e sequioso de verdade.
Em seguida, Zé vê que está cego. “Vejo que estou cego!”, exclamaria para si
mesmo se soubesse exclamar.
Outra página. Zé localiza algo. Sem poder
definir o que seja, contenta-se em chamar de “uma coisa”. Na sua incerteza, só
sabe que é grande. Ajusta a ocular do microscópio. Começar a ampliar. Duas,
quatro, dezesseis vezes. Um milhão. Um bilhão. A coisa, ao invés de crescer,
fica mais e mais diminuta. E difusa.
Um trilhão. A coisa permanece incólume ao
poder do superaparelho. Zé abandona a resistência e abre a ocular até o fim.
Espia. A palavra FRACASSO se ilumina na Caverna Absoluta em letras neon cor de
rosa e verdes, desprendendo um vapor em que reverberam borbulhas lilases e
reflexos amarelados.
Zé quer fechar o olho, mas não consegue.
O letreiro tem um poder hipnótico básico que parece resumir a experiência de
sua vida inteira, de repente assumindo uma forma bem-definida que pode ser
vista integralmente. Então Zé tem uma sensação de unidade.
Vaporosa, esquiva unidade.