Na maioria eles estacionam longe,
mesmo havendo vaga em frente, e vêm chegando sorrateiros, cabeça baixa, quase
às escondidas. Não olham para os lados. O portão fica convenientemente às
escuras. São quase todos velhos, caras que se pretendem circunspectas mas que
denunciam a angústia da transgressão constrangida. Algumas velhas senhoras
ousam comparecer sozinhas qual adolescentes fugindo da família. Muitos são
gordos, alguns obesos, párias da classe média não aceitos em outros circuitos do
epicurismo. Se não jogam, ficam em casa a se empanturrar, remoendo a culpa pela
glutonice, provavelmente com muito maior amargor. Assim optam por um tipo de
auto-degradação que confira ao menos algum prazer sem cobrar o alto preço de
fechar os olhos diante do espelho.
Sylvia, há também os
moços e as moças. Me espanto vendo-os vindo dar seu suado dinheiro aos donos da
jogatina. Invariavelmente se vestem com discrição e simplicidade, tons pastéis,
de certo receando chamar atenção. (Mas obviamente chamam a dum sujeito
desgarrado do rebanho como eu.)
Mesmo o jeans é raro entre essa
extemporânea moçada. Envergam ares de jovens cansados e desiludidos,
envelhecidos demasiado cedo. Deslocados, a esta hora deviam estar alhures,
bebendo vodka com energético, esnifando coca, curtindo os vícios próprios da
idade. Em vez disso movem-se para dentro e para fora da grande casa
silenciosos, olhares no chão, semiocultos na penumbra da noitinha, lamentando a
insuficiência das sombras.
O recém-chegado dá um envergonhado
toque na campainha e é instantaneamente absorvido como se um hiper-aspirador
quântico o sugasse num piscar da história. Às vezes tenho a pachorra de fazer
um pouco de farol na porta de casa acompanhando o movimento e então flagro uns
e outros caindo fora nem dez ou vinte minutos se passam. Provavelmente são os
mais afoitos. Ou entraram sonhando com a jogada milagrosa que lhes daria uma
bolada suficiente para um mês de mercado ou já saíram de caso predispostos a
perder logo tudo de uma vez na esperança de abreviar ao máximo, e ao mínimo, o
sofrimento da impaciência. Qualquer que seja sua categoria, as maquininhas de
arrancar grana de doentes os deixam lisos assim que finalizam a consumação
média estimada. Permanecem no casulo tumular sobrecarregado de fumaça de cigarro
apenas o bastante para algumas meias cervejas, das quais a derradeira abandonam
pela metade assim que se dão conta de sua indefectível falta de sorte e fogem
apressados para retomar suas vidinhas sem perspectiva.
Sylvia, sei que posso estar soando
moralista. Mas, veja, não tenho de fato pena dos jogadores. Pelo contrário,
admiro neles a facilidade com que se entregam à única curtição que ainda lhes é
possível e a despreocupação com que dão de mão beijada suas economias aos “empresários”
do jogo.
Eis um vício que jamais dominaria
minha vontade, por fraca que seja, nem os resquícios que ainda me restam de
sensatez, que nunca foi meu forte. Apostar no mano a mano com um computador que
está sabidamente programado para trapacear flutua soporiferamente longe do meu
entendimento. Me render ao auto-ludibrio, mesmo que por livre e espontânea
vontade, a lúdico título, não faz meu gosto nem satisfaz minha vocação à
desconfiança. Me pergunto se pode haver gente que curte ser enganada. Pode,
obviamente, me respondo indiferente. Para que fim, nem imagino. Será sentimento
de culpa que requer expiação circular e constante? Quem sabe. Nunca fui bom em
análise psicológica. Cada um que seja louco como melhor lhe aprouver, não é
mesmo, minha cara teutônica?
Eu nunca participaria dum esquema que
não me permitisse auferir algum dividendo. Mesmo que simbólico. Se um dia
entrasse num bingo, contendo o nojo daquele fedor misto de cerveja rançosa
esparramada nos tampos das mesas, montanhas de tocos cigarros desamparadamente
esmagados nos cinzeiros imundos e coxinhas, quibes e esfirras esquecidas pelos
cantos, não ia sair sem um lucro qualquer, por ínfimo que fosse. Poderia ser um
uísque por conta da casa a título de consolo pelos meus dez reais perdidos ou
um brindezinho como um boné com a inscrição “Sou idiota, jogo no bingo do Zé”.
De mãos abanando e cara de tacho, nem pensar.
Certo, os velhos - talvez não
incluindo aqueles que frequentam bingos - antigamente costumavam recomendar a
nós jovens, “nunca diga ‘deste uísque não beberei’". Gostavam também de repetir
preciosidades como “o mundo dá voltas”, dito que eu, molecão afeito a
radicalismos e chegado a um preto-no-branco, achava risivelmente imbecil.
(Embora hoje saiba que é um dos pilares da existência e que não se ri
impunemente dum dos pilares da existência.)
Ainda que leitor desde pirralho,
sempre tive problemas com o potencial evocativo do vernáculo. Lembro que,
púbere, metáforas e metonímias me irritavam. Passando pela escola, fui forçado
a me submeter às figuras de palavra e de linguagem de que todos padecemos. Até
assimilei algumas, só para me dar conta de que hoje em dia ainda as detesto,
tal como Roth e outros grandes americanos mas que eram o xodó da minha
iridescente Sylvia. (Provavelmente o são para os poetas em geral.)
Em contrapartida, todo mundo e sua
sogra hoje diz “risco de morte”, ao que parece em nome da “clareza” da
comunicação e sob o pavor de que as infinitas complexidades da língua fujam ao
controle, que já é desoladoramente parco. Nesse sentido, acho mesmo que esses
semiletrados têm razão: é melhor estarem bem seguros de suas palavras, por mais
pobres que estas sejam, do que se aventurarem numa sutileza linguística que na
verdade signifique o contrário do que pretendem expressar. Falar “risco de
morte” no fundo é sensatamente não correr riscos de morte de vexames
semânticos.