O filho

Para um filho, de um filho



O filho
Quando nasceu ainda não sabia que era filho. Quando nasceu sabia que tudo era em vão, pois chegava a este mundo trazendo a experiência vazia do nada. O filho revirou os olhos mas não viu ao redor - não sabia ver para fora. Seu campo de vista não ultrapassava a escuridão e ele só enxergava seu próprio deserto devastado. Nos primeiros momentos ainda pôde alimentar a fria chama de esperança de que nem todos os pensamentos que a autocensura deixaria seu cérebro verter ao longo do resto de sua existência seriam consumidos unicamente na luta pela salvação.

A salvação
Ó meu bom Jesus
Que a todos conduz
Olhai as crianças do nosso Brasil

O filho podia perceber a presença de algumas pessoas nas proximidades (embora as proximidades fossem um nebuloso país longínquo habitado por filhos condenados a entoar o hino da redenção e a errar eternamente entre os cômodos da casa e o quintal iluminado pelo sol que nunca brilhava). Sim, havia pessoas por perto que pareciam não haver. Antes que as houvesse era preciso tê-las e isso ele não poderia, pois seu olhar atento e ao mesmo tempo desiludido e demasiadamente devassador não podia abarcá-las. Eram as pessoas transparentes (dos delírios de vidro acanalado, dos véus de seda da Índia onde ficava o reino da dor com cara humana, do plástico diáfano colhido das embalagens jogadas nas calçadas, das bolhas de sabão sopradas no ar de uma tarde de domingo que hoje jazia dobrada e oculta feito um cancro no desfile interminável dos seus dias), que iam e vinham e sumiam e apareciam e subiam e desciam e sob o olhar impaciente, que ainda não era metafísico, do filho intercalavam-se, amalgamavam-se, entrecruzavam-se, libertavam-se umas das outras formando entre si uns fios de borracha que se delgavam mais e mais à medida que se afastavam.

Essas pessoas elásticas cobertas por véus plúmbeos que se dedicavam a dançar diante do filho para que ele pudesse ao menos fingir que não sentia dor viraram um monumento de mármore e hoje estão expostas ao vento frio que sopra no vasto pátio que o filho mantém em seu passado. Os elásticos entoam de dentro de suas bocas eternamente abertas:

Serenô eu caio, eu caio
Serenô deixa cair,
Serenô da madrugada
não deixou meu bem dormir.

mas o filho não pode escutar: está ocupado em pagar com a vida o crime de ter nascido.

O aquário

Secretamente, o filho mantinha um aquário em que as pessoas que viviam no aquário encostavam o nariz para observá-lo no plasma em que ele existia. O aquário era a consciência. Do fundo do aquário brotavam visões cegas, ruídos surdos e sensações intácteis vindos do mundo que o filho não sabia existir dentro do aquário e que iam somar-se à dor onipresente em sua experiência vazia.

A viagem

Assim que nasceu, o filho viu que sua vida seria uma viagem entrecortada por infindáveis outras viagens sobrepostas umas às outras que partiam de todos os lugares e iam para todos os outros lugares. O filho viu também que nunca daria o primeiro passo para iniciar a viagem. Ao longo do caminho, colheria impressões – felizes e amenas e singelas e terríveis e agônicas. O filho partiu em sua viagem com saudades de onde não estivera. Deixava para trás todas as terríveis experiências que ainda teria na vida. Sabia. Nascera com algumas pepitas de ouro nas mãos, as quais largaria uma a uma pelo caminho e, quando olhasse para trás, veria que cada uma se transformaria em dourado e reluzente nada. No bolso direito das calças o filho guardava um mapa vazio com todas as estradas – arriscadas passagens que levavam ao ontem, ao amanhã, à sala, à Europa em cem passos, à escada que descia até o mais escuro dos negrumes, à sua própria insperscrutável solidão povoada de palavras sem sentido.

As palavras

O filho inventou as palavras e tentou usá-las. A sensação era dolorosamente estranha. Palavras que, quando pronunciadas quase que por um impulso arbitrário, cutucavam uma dor inerte em seu fundo sem fim e que então despertava e nascia. Cada palavra tinha sua própria dor com escuridão. Cada sílaba pronunciada pelo filho era um fio de uma teia selvagem por onde corria a medonha aranha, mestra das mestras, projetando sua sombra na terra vazia. Ele sabia porque esse era o eco que escutava.

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