Pássaros do passado

Antes de tudo há de admitir que todos foram chamados ao salão de festas do prédio e antes da reunião pediu-se ao zelador que providenciasse uma boa faxina. Também aplicasse lustra-móveis na mesa e cadeiras e, sem querer abusar de sua paciência, limpasse o grande lustre de cristal que paira imponente sobre a mesa. Se possível, polisse os estofados.
O primeiro a chegar foi o investidor, como era de prever. Aproximando-se sem sorriso ou outro sinal de cordialidade, apertou mecanicamente a mão. Depois escolheu uma cadeira bem na metade da mesa.
Em seguida veio o poeta, que se limitou a puxar a boca para um lado à guisa de cumprimento.
Então chegaram, pela ordem, o quitandeiro, o farmacêutico, a tia em segundo grau, a costureira, o cliente, o contador.
E assim por diante.
Quando estavam todos acomodados, resolveu-se que os lugares deviam ser trocados. Algo parecia indescritivelmente errado.
Trocaram.
Trocaram e trocaram, várias vezes até que as cadeiras pareceram arranjadas da forma impotentemente menos insatisfatória.
Quando pareciam estar em estado de mínimo conforto em seus lugares, lhes foi proposto um bacanal arretado que elevasse a todos um tico que fosse acima deste sufocante cotidiano em que nunca acontece nada digno de nota e nos parece amarrar tolhendo braços e pernas como se estivéssemos metidos numa gigantesca cumbuca de angu.
Não precisa ser agora, explicou-se com receio de que não topassem. Se quiserem deixar para a semana que vem, sem problema.
Cada um se recusou.
Não sem razão.
Papai alegou que já estava morto, seria barra pesada ejacular um esperma gasoso e sentir sua etérea Rola numa Buceta Morna Encharcada de Vida.
Sancho Pança, à época do convite, estava meio enroscado numas barbeiragens das brabas em que se metera com a filha dum político e decidiu, acertadamente, declinar.
Waldirene pra variar perambulava pelas ruas de Sanca, entrando e saindo de nossas casas, mumunhando asnices a quem estivesse disposto a escutá-las – e, pasme-se infinitamente, sempre havia alguém –, preferiu-se não distraí-la (e ela certamente se revelaria um desastre no bacanal, levando todos a um tédio genocida se resolvesse abrir a bocarra para jorrar mais um dilúvio de falação sobre aqueles assuntos que nenhum de nós nunca entendia direito de que tratavam).
Sílvia, ver outros machos lhe traçando a Perinha Celestial nem pensar, introduzindo metade do dedo médio em seu angelical rabicó jamais, lambendo-lhe as tenras orelhinhas com linguaradas lentas e lascivas que a lavassem até largá-la lassa, lânguida e lívida de prazer em outros braços, nunca.
Silvinha, Tiaeva vetou, os agentes literários, o cliente e o investidor não seriam boa companhia para a menina.
A própria Tiaeva recusou dizendo que não suportaria ver brochar a Rola em outros braços que não os dela.
Marlene também estava descartada, não iria se Sílvia não fosse.
A última esperança era a engenheira Fátima. No sôfrego telefonema dado a ela, a engenheira Fátima lamentou, pedindo exageradas desculpas, alegando estar às voltas cuns complexos testes de componentes eletrônicos que não seria possível postergar, jurando que no próximo não faltaria.
Por fim concluiu-se pela limitação aos agentes literários da firma, ao contador, ao paraguaio ranzinza, ao sofredor superficial e ao matemático.
E assim cancelou-se o evento. Orgia só de homem, ugh.
Compadecido do desapontamento, Sancho Pança sugeriu:
– E se fossem convocados os pássaros do passado? – arqueando as sobrancelhas no gesto típico de animação que lhe emprestava uma expressão histriônica ao rosto balofo que em geral remetia à máscara hirta de Rosa.
Na hora o nariz se torceu mas, findos alguns momentos de reflexão, concluiu-se que talvez fosse uma boa. Fazia algum tempo vinha cozinhando a idéia dum reunion com os referidos pássaros, mais por falta do que fazer em certas noites, sob o aporrinhamento solitário no escritório, diante do computador, quebrando a cabeça para descobrir a senha do arquivo deixado de herança por papai.
Sem problemas.
E Sancho Pança ergueu ainda mais as sobrancelhas, excitado.
Mas você se encarrega de levantar os endereços. E mandar imprimir os convites. E pôr no correio.
– Sem problemas. Afinal, pra que serve um sancho-pança? – Ele se mostrou surpreso com a decisão.
Ficando resolvido assim.
– Mas em vez de reunio­n, chame-se de festival – propôs. – Esses estrangeirismos ficam meio pernósticos, mesmo no caso.
Chamasse do que fosse. Desde que viessem todos.
Alguns dias depois bateu à porta no escritório, pediu licença e tirou uma amostra dos bolsos do paletó, dizendo, manja só como ficou bacana.
Um polegar uniu-se a um indicador e, fazendo um cículo no ar sobre a mesa atulhada de papéis, pinçaram o convite, impresso em letras pretas discretas sobre em papel reciclado pardo, envelope também reciclado mas em outro tom mais sépia.
Os olhos leram:

Prezado(a)… no dia… às… à rua… terá início o Nosso Grande Festival, a realizar-se às… horas do dia… de… Como você certamente sabe, é em prol de boa causa, e tudo que humildemente pedimos é sua doce presença. Por favor, não falte. Você é profundamente importante para nós (todos). Queríamos poder fornecer mais informações a respeito, mas o papel, você sabe, anda escasso. Podemos adiantar, entretanto, que o festival será em homenagem própria. Celebraremos o mistério da nossa vida, que, como você igualmente sabe, não tem mistério algum.
Assinado…

Os mesmos dedos devolveram a amostra a Sancho Pança, a cabeça fez que sim, a boca recomendou:
Apareça para dar uma força, está ouvindo?
Ensaiando um muchocho, ele reclamou:
– Bem agora que queria tirar umas férias?
A única resposta que obteve à insolência foi um olhar incandescente de frio.
Chegado o dia acordou-se bem cedo, como sempre.
Determinaram-se os preparativos finais, deram-se os últimos telefonemas e sentou-se à poltrona marrom da sala, tendo antes as mãos (e os braços) fechado as cortinas para que o ambiente permanecesse em penumbra. Assim, solitariamente – também como sempre -, Com ansiedade mas ao mesmo tempo o coração tomado de surpreendente paz, esperou-se sentado, os olhos pousando aleatoriamente na silhueta indefinida de cada móvel, o espírito absorto em pensamentos igualmente vagos.
Até que a hora marcada finalmente chegou.
Os quadris levantaram-se, as pernas dirigiram-se ao salão de festas, os olhos diligentes inspecionaram alguns detalhes e a sombra postou-se ao portão principal para iniciar a recepção.
Vieram todos, convidados ou não. Muitos, talvez a maioria, pareciam estranhos, a memória não conseguia lembrar-se de onde ou em que circunstância foram conhecidos. De alguns recordou-se quando os olhos os avistaram – qual objetos velhos dentro dum armário no porão, estavam ainda esquecidos na lembrança à revelia da guarda inconstante da própria memória. Outros, foi possível identificar à custa de algum esforço dos neurônios e truques mnemônicos por meio de associação a terceiros ou a ocasiões ou lugares.
Todos chegavam e se punham nesta direção para que se lhes fizesse as honras da casa. A maioria trazia no rosto afável sorriso de boas intenções, evidenciando que vinham com espírito desarmado. Alguns eram apenas diplomaticamente formais, outros, diplomaticamente simpáticos, outros, indiferentes.
A melhor política do bom anfitrião é oferecer a todos os convidados exatamente a mesma deferência – fazer distinções é fatal para o sucesso do evento. Para não se deixar desorientar pelos sentimentos que se têm em relação a cada um deles, aferrou-se tenazmente a esse princípio à medida que a memória os identificava.
Ah, aquele ali é um velho conhecido de papai cujo nome nunca se soube e que servia apenas como mais um dos milhares de figurantes assíduos do teatro pessoal.
Aquela outra moça surgira de repente na classe para substituir a professora de Geografia que adoecera. 1968. Seu nome também passou sem registro, seu rosto existia mas não evocava nada, constituindo apenas mais um dos absurdos a que nos conformamos todos.
Aquela criança foi conhecida e odiada mortalmente num playground, a outra fazia ginástica na mesma classe, aquele é um garçom com quem que um dia discutiu-se por causa da conta do jantar, detentor de ódio descomunal por pelo menos uma noite de assoberbante embriaguês.
De cada um deles a mão apertou a mão, mas em nenhum, absolutamente nenhum instante os olhos se olharam nem se dirigiram ou balbuciaram palavras aos ouvidos, mesmo as defensivamente protocolares.
Os que chegavam acompanhados eram divididos e distribuídos em lugares separados no salão, incluindo os casais. Os que vinham sós eram unidos aos grupos que se iam formando sem critério distinto.
De todo modo, foi possível obter uma boa mistura.
Trabalhava o cérebro enquanto as pernas faziam uma ronda pelo salão. Todos conversavam sobre os mais variados tópicos, em geral interessantes como enfartes súbitos de conhecidos, revoluções em países distantes, quedas de aviões ou felizardos que haviam tirado a sorte grande na loteria, outros mesmo curiosos, como um vizinho que havia fugido com a empregada ou um primo flagrado depois da aula de Geografia com o professor.


Os não convidados eram os mais à-vontade – alguns mostravam-se até francamente entusiasmados. Os de fato convidados agiam – ou deixavam de agir – como se esperassem uma ordem.
Passados dez minutos verificou-se a lista, concluindo-se que estavam todos presentes. As pernas rumaram para o meio do salão, as mãos bateram delicadamente algumas palmas para chamar a atenção de todos e a voz anunciou com insuspeito tom solene:
– Senhores  e senhoras, sejam bem-vindos. É com imensa gratidão e entusiasmo que saudamos a presença de todos neste singelo festival. Dito isto, será dado início imediato aos festejos.
A cabeça fez um ligeiro aceno numa certa direção, em sinal cifrado para que a festa começasse. As portas foram abertas e solicitou-se a todos que se dirigissem ao pátio do jardim interno.
Sem interromper os assuntos com que se entretinham, eles se puseram em direção à porta.
Quando todos haviam encontrado um lugar no pátio, ouviu-se um baque seco e uma porta pesada se abriu. Todos os olhos se voltaram para a direção do ruído e viram Sancho Pança a bordo de um jipe willis 1951, motor dianteiro de 4 cilindros a gasolina refrigerado a ar com 90 cv, câmbio de 6 marchas para frente ou para trás, tração 4x4 e uma gigantesca metralhadora 7.67 mm, 300 tiros por segundo, com capacidade para perfurar chapas de até 20 mm.
Ato contínuo, a arma desandou a cuspir balas em saraivadas inescapáveis e num matraqueio seco e imperativo.
Um a um, dizimaram-se todos.
A cabeça acenou numa direção. Sancho Pança saltou do jipe e se dirigiu a uma cortina, que descerrou. Atrás dela havia uma enorme gaiola.
Ele abriu a portinhola e milhares de pássaros se lançaram rumo às alturas, para todas as direções, destino desconhecido. As mãos bateram palmas secas.


Aí está, leitor, por que temos um sancho-pança. E esse foi o fim da caça aos pássaros do passado.
Os pássaros do passado continuam a sobrevoar o horizonte. Não é sempre. Dias há, porém, em que velam a luz do sol e uma noite negra artificial encobre o mundo.



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