Sobras duma sexta à noite

Por quê? Que é que vai mudar? Não tenho mais nenhum herói, não tenho mais heroína nenhuma, o sentido está perdido, finalmente chafurdo no nada.
Até ontem ainda podia me socorrer da melancolia. A hora ia chegar de que não me bastaria, estava certo, e ontem chegou. E tantas outras horas chegaram. Poderiam bem vir todas duma só vez. Perfazendo minha epifânica sinfonia, executada monumental e silenciosamente pela minha orquestra de defuntos.
(Não se enoje. Poderia ter dito "cadáveres".)
Esta sexta à noite vou tirar para navegar pelas estrelas - minhas estrelas que ainda não perdi, que todas já as perdi.
Essa dorzinha indecente nos quadris vem me atormentando há duas semanas. Não tenho mais posição para sentar, não tenho mais posição para deitar. Quando ando quero me sentar, quando me sento quero dormir. Quando durmo quero dormir, e não durmo.
As centenas de noites de sexta que vivi se extinguiram como se extingue a luz. Uma época pensava em emigrar para o Canadá (ainda meu pergunto como teria sido). Outra, sonhava que meus passos ressoavam na madrugada do Madison Square Garden.
Nesta noite de sexta sou uma estátua (de gesso, de barro, de plástico) sentada diante duma tela cuja única habilidade que restou dum passado que não sabe se houve é tamborilar os dedos (de aluno, de aroma de vinho tinto, de caroços de pêssego cuspidos na terra úmida do quintal).
Boliche, joguei apenas uma vez em toda minha longa vida. E em minha longa vida joguei boliche muito cedo, aos nove anos. Você não imagina como uma bola de boliche pode ser pesada, os filmes não mentem. Enfiei meus dedinhos frágeis de guri de nove anos naqueles furos e olhei a pista. Lá no fundo vi sete garrafinhas (eles dizem pinos). Uma para cada noite da semana. Quero acertar só uma, me lembro tão claramente de ter pensado.
Olhei em volta e não vi ninguém. Sorri e chorei.
Não tinha ideia de que a tragédia dos 500 mortos no circo podia ser um alívio. Dormi bem aquela noite, que era de terça.
A compulsão a fugir perdeu o sentido e na hora não soube estabelecer relação entre um e outro. Ter de fazer sentido nunca fez muito sentido para mim.
Não pode ser que dos meus três aos meus nove anos nada tenha tido cheiro forte que não o ácido muriático que mamãe mandou comprar na farmácia do seu Joãozinho quando mudamos para a casa nova. Aquela noite queimei os pés e as palmas das mãos esfregando o chão da cozinha e do banheiro. E era uma noite de segunda.
E na noite de Natal papai comprava uma garrafa de sidra, de que me deixava sorver dois ou três goles no máximo.
Já sabia contar até cem, já ouvira falar dum lugar chamado Europa, aonde era impossível ir a pé.
E se ele tivesse me dito que podia, sim? Um dia? Uma noite?
Tudo teria sido diferentemente igual. Sei hoje.

Um comentário:

  1. E igualmente e infinitamente diferente, hoje também o sei. De nada adiantou tanto mudar e ser eternamente o mesmo.

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