A ficção é obrigada a se apegar às possibilidades. A
verdade, não.
Mark Twain
Recebo um telefonema dum tal de Fred. Quer
conversar.
Sobre o quê?
Assunto do meu interesse.
Como arrumou meu número? Não está na lista. Se
tenho celular? Claro que não.
Do meu interesse?
Posso ficar tranquilo.
Por que que não ficaria?
Onde podemos bater um papo? Fora o boteco do
Lacerda, não me ocorre outro lugar. Endereço? Bem em frente à minha casa, sabe
onde fica?
Sabe.
Às nove está bom? Pode ser às onze? Às nove
reticências.
Da minha mesa vejo um rapaz entrar. Tem a cabeça
um pouco grande demais, dá para ver pelos olhos perdidos no meio do rosto.
Seria bonito não fosse a jaca sobre o pescoço desmilinguido. Olhando em volta se
dirige ao balcão. Não há ninguém para atender, aguarda, ausculta, evitando
olhar para o meu lado. Sabe que sou eu. Sei que é ele mas fico na minha. Alguns
minutos depois, que ele parece passar apagado feito um ursinho sem pilha, a
Soninha, filha do Lacerda, sai lá de dentro e pergunta pois não? O rapaz diz
algo em voz baixa e a Soninha aponta para cá. Ele engata um meio-sorriso polido
e vem.
Boa noite. Como vai? Sou o Fred.
Ele estende a mão de unhas longas e pontiagudas.
E extraordinariamente fortes, tipo Baden Powell, boas para tocar violão. Aperto
e indico a cadeira à minha frente.
Vai tomar o quê?
Uma coca, por favor.
Não prefere algo mais reticências?
Ergo o braço para a Soninha e faço
CO...CA...MI...NHA...GOS...TO...SA... com os lábios bem abertos, sem voz,
imitando aqueles sujeitos que dizem eu-te-amo de longe às namoradinhas loiras
nos filmes se afastando na janelinha do trem.
Olho Fred e aguardo. Ele sustenta meu olhar por
uns segundos e então explica.
Um amigo acabou de falecer, deixando um amontoado
de anotações literárias. Pretendia botar tudo num livro, não deu tempo. Derrame
fulminante, coitado.
Fred faz uma pausa para ver se digo algo. Não
digo nada. Ele prossegue.
Era bom escritor esse seu amigo. Mas, como tantos
milhares que existem por aí, não teve tempo de “compilar” a obra.
O tempo é sempre o grande problema, não é mesmo?
Ele pergunta e me olha expectante.
Espremo os lábios e franzo a testa e estreito os
olhos numa careta à la DeNiro, incerto se devo concordar ou não.
Quer saber se me encarrego da tarefa.
Quanto ganho?
Dinheiro, não tem. Mas pode botar no teu
nome.
Tô duro, preciso de grana. Anotações, tenho as minhas. Trinta anos delas.
Duas a três bíblias. Juntar é fácil. Um cheiro da infância, uma linha, um
trago, outra linha, uma lembrança, mais uma. O foda é articular.
Dê uma olhada pelo menos. Vale a pena. Está tudo
muito disperso mas tem qualidade. Fred tira um CD. Ou DVD. Não sei a diferença.
Não tenho computador.
Ele ri com seus olhinhos perdidos.
Ergo as sobrancelhas.
E se eu imprimir?
Faço tanto-faz com os ombros. Sem compromisso. Eu
mesmo estou em extinção. Provavelmente não duro uns dois anos. Se algum
zoológico reticências.
Ele se levanta. Trago amanhã impresso. Aqui,
mesma hora?
Me aperta a mão e se afasta sem tocar na coca.
Podia ao menos ter pago. Se aceitar a empreitada, boto na conta. Ia dizer que
pretendo comprar um celular algum dia, fiquei com preguiça.
Quem sabe me desse um de presente?
Tenho vergonha de pedir.
Enfio dois dedos no bolso da camisa, tiro uma
folhinha do meu bloco de notas. Está escrito “Algaravia” em letrinhas
espremidas no meu garrancho de matuto semianalfabeto, no canto superior
esquerdo, bem perto das margens, como se eu antevisse uma torrente inspirada,
economizando o máximo de espaço para as palavras inexprimidas ainda se
atropelando dentro da minha cabeça ávidas por vir a lume. A inspiração abortada
me dá um azedo no fundo da boca, que tento lavar cum gole de stein. Foi essa
porcaria de nove letras que passei a noite escrevendo? Estava contando com pelo
menos uns dois capítulos razoavelmente arrematados do livro que comecei há uns
20 anos cujos rumos retorço erraticamente de hora em hora e cujos personagens
mato e ressuscito e rebatizo e mudo de sexo a cada semana qual cirurgião
plástico ensandecido e cujo novo título celebro comigo mesmo agora só para
cuspir enojado da minha própria inanidade amanhã.
“Algaravia”. Por que é que vira e mexe cismo com
essa desgraça? Não existem algaravias, são delírios dos almeidas-garrets. Deus,
me sinto um adolescente encurralado pelas atrozes beldades do vernáculo.
Algaravia é um trauma da infância que preciso superar se pretendo um dia
escrever algo que preste. Que turbilhão de ideias poderia advir dessa pobreza?
Minhas abstrações me sufocam.
Essas anotações são um amontoado de algaravias em
permanente pré-estágio para poesias infantis.
De repente me ocorre, e se eu juntasse meus
escritos aos do falecido amigo do tal Fred? Pior do que estava não podia ficar.
E sempre me seduziram os caminhos e descaminhos da aleatoriedade. Quem sabe
esse Fred, que parece crânio em informática, pudesse juntar num programa de
computador todas as nossas anotações e tirar algo aproveitável dessa horrenda,
dessa monumental, dessa estrambótica gororoba? Afinal não é o que todo mundo
que se diz escritor faz hoje em dia? Tem gente que até ganha concurso literário
com o truque.
Fico tão entusiasmado com a solução, que me
admiro comigo mesmo. Até sinto um meio-sorriso me fazer cócegas nos lábios. Há
quanto tempo um ânimo desses não visitava os labirintos sombrios que tomaram o
lugar dos meus pensamentos? No mínimo, desde que Sílvia me deixou. Foi há...
Cinco anos! Não, não posso ter sobrevivido todo esse tempo. Foi há cinco
minutos. Foi há cinco séculos.
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