Amorokê na vila - Capítulo 001

A ficção é obrigada a se apegar às possibilidades. A verdade, não.
Mark Twain


Recebo um telefonema dum tal de Fred. Quer conversar.
Sobre o quê?
Assunto do meu interesse.
Como arrumou meu número? Não está na lista. Se tenho celular? Claro que não.
Do meu interesse?
Posso ficar tranquilo.
Por que que não ficaria?
Onde podemos bater um papo? Fora o boteco do Lacerda, não me ocorre outro lugar. Endereço? Bem em frente à minha casa, sabe onde fica?
Sabe.
Às nove está bom? Pode ser às onze? Às nove reticências.
Da minha mesa vejo um rapaz entrar. Tem a cabeça um pouco grande demais, dá para ver pelos olhos perdidos no meio do rosto. Seria bonito não fosse a jaca sobre o pescoço desmilinguido. Olhando em volta se dirige ao balcão. Não há ninguém para atender, aguarda, ausculta, evitando olhar para o meu lado. Sabe que sou eu. Sei que é ele mas fico na minha. Alguns minutos depois, que ele parece passar apagado feito um ursinho sem pilha, a Soninha, filha do Lacerda, sai lá de dentro e pergunta pois não? O rapaz diz algo em voz baixa e a Soninha aponta para cá. Ele engata um meio-sorriso polido e vem.
Boa noite. Como vai? Sou o Fred.
Ele estende a mão de unhas longas e pontiagudas. E extraordinariamente fortes, tipo Baden Powell, boas para tocar violão. Aperto e indico a cadeira à minha frente.
Vai tomar o quê?
Uma coca, por favor.
Não prefere algo mais reticências?
Ergo o braço para a Soninha e faço CO...CA...MI...NHA...GOS...TO...SA... com os lábios bem abertos, sem voz, imitando aqueles sujeitos que dizem eu-te-amo de longe às namoradinhas loiras nos filmes se afastando na janelinha do trem.
Olho Fred e aguardo. Ele sustenta meu olhar por uns segundos e então explica.
Um amigo acabou de falecer, deixando um amontoado de anotações literárias. Pretendia botar tudo num livro, não deu tempo. Derrame fulminante, coitado.
Fred faz uma pausa para ver se digo algo. Não digo nada. Ele prossegue.
Era bom escritor esse seu amigo. Mas, como tantos milhares que existem por aí, não teve tempo de “compilar” a obra.
O tempo é sempre o grande problema, não é mesmo? Ele pergunta e me olha expectante.
Espremo os lábios e franzo a testa e estreito os olhos numa careta à la DeNiro, incerto se devo concordar ou não.
Quer saber se me encarrego da tarefa. 
Quanto ganho?
Dinheiro, não tem. Mas pode botar no teu nome. 
Tô duro, preciso de grana. Anotações, tenho as minhas. Trinta anos delas. Duas a três bíblias. Juntar  é fácil. Um cheiro da infância, uma linha, um trago, outra linha, uma lembrança, mais uma. O foda é articular.
Dê uma olhada pelo menos. Vale a pena. Está tudo muito disperso mas tem qualidade. Fred tira um CD. Ou DVD. Não sei a diferença.
Não tenho computador.
Ele ri com seus olhinhos perdidos. 
Ergo as sobrancelhas.
E se eu imprimir?
Faço tanto-faz com os ombros. Sem compromisso. Eu mesmo estou em extinção. Provavelmente não duro uns dois anos. Se algum zoológico reticências.
Ele se levanta. Trago amanhã impresso. Aqui, mesma hora?
Me aperta a mão e se afasta sem tocar na coca. Podia ao menos ter pago. Se aceitar a empreitada, boto na conta. Ia dizer que pretendo comprar um celular algum dia, fiquei com preguiça.
Quem sabe me desse um de presente?
Tenho vergonha de pedir.
Enfio dois dedos no bolso da camisa, tiro uma folhinha do meu bloco de notas. Está escrito “Algaravia” em letrinhas espremidas no meu garrancho de matuto semianalfabeto, no canto superior esquerdo, bem perto das margens, como se eu antevisse uma torrente inspirada, economizando o máximo de espaço para as palavras inexprimidas ainda se atropelando dentro da minha cabeça ávidas por vir a lume. A inspiração abortada me dá um azedo no fundo da boca, que tento lavar cum gole de stein. Foi essa porcaria de nove letras que passei a noite escrevendo? Estava contando com pelo menos uns dois capítulos razoavelmente arrematados do livro que comecei há uns 20 anos cujos rumos retorço erraticamente de hora em hora e cujos personagens mato e ressuscito e rebatizo e mudo de sexo a cada semana qual cirurgião plástico ensandecido e cujo novo título celebro comigo mesmo agora só para cuspir enojado da minha própria inanidade amanhã.
“Algaravia”. Por que é que vira e mexe cismo com essa desgraça? Não existem algaravias, são delírios dos almeidas-garrets. Deus, me sinto um adolescente encurralado pelas atrozes beldades do vernáculo. Algaravia é um trauma da infância que preciso superar se pretendo um dia escrever algo que preste. Que turbilhão de ideias poderia advir dessa pobreza? Minhas abstrações me sufocam.
Essas anotações são um amontoado de algaravias em permanente pré-estágio para poesias infantis.
De repente me ocorre, e se eu juntasse meus escritos aos do falecido amigo do tal Fred? Pior do que estava não podia ficar. E sempre me seduziram os caminhos e descaminhos da aleatoriedade. Quem sabe esse Fred, que parece crânio em informática, pudesse juntar num programa de computador todas as nossas anotações e tirar algo aproveitável dessa horrenda, dessa monumental, dessa estrambótica gororoba? Afinal não é o que todo mundo que se diz escritor faz hoje em dia? Tem gente que até ganha concurso literário com o truque.

Fico tão entusiasmado com a solução, que me admiro comigo mesmo. Até sinto um meio-sorriso me fazer cócegas nos lábios. Há quanto tempo um ânimo desses não visitava os labirintos sombrios que tomaram o lugar dos meus pensamentos? No mínimo, desde que Sílvia me deixou. Foi há... Cinco anos! Não, não posso ter sobrevivido todo esse tempo. Foi há cinco minutos. Foi há cinco séculos.

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