Entro no quarto distraído, dou com teus objetos pessoais amontoados num
canto, tuas roupas largadas na cadeira.
Dos teus objetos e de tuas roupas, teus sapatos são os mais tristes.
Os mais reveladores.
(Serão também os meus? Os de todos nós?)
Ao contrário da tua camisa. E da tua blusa. Estas registram, quando
muito, apenas as gotas de café que deixaste pingar enquanto falavas desses
assuntos de que falas todos os dias.
(E quantos são os assuntos de que tens de falar todos os dias.)
Ou nas horas de ansiedade em que esperavas que uma notícia finalmente
boa viesse te afastar do teu destino.
Tua blusa exibe alguns fios caídos do teu cabelo escasso.
A camisa, furtivos, brancos flocos de caspa.
(Mas não a neve furtiva e branca que, vejo pela janela do quarto, não
cai lá fora.)
Também ao contrário das tuas calças.
Nelas, deixaste as marcas de suor das tuas mãos nervosas, eternamente a
esfregar uma sujeira inexistente que pensavas indelével.
Os fundilhos quase se esgarçaram, tantas foram as cadeiras em que
cumpriste as esperas que te couberam. Tantos foram os bancos que
disciplinadamente te obrigaste a ocupar enquanto não passasse o nervosismo, a
ansiedade com que insistes em viver.
Tantas foram as poltronas em que teu corpo cansado, sob domínio da tua
amarga impaciência, repousou depois dos frenéticos exercícios com que tentavas
vencer tua inocência. Tantos foram os sofás em que te estiraste na penumbra,
dando-se o luxo de permanecer longos minutos em estado de absorção, matutando
os mistérios que forjaste para afetar uma profundidade que, sabias (sempre
soubeste), nunca foi verdadeira.
Os muros em que trepaste na infância, aprendiz que tinhas sido (desde o
berço, talvez) do homem inquieto por excelência, desta e todas as épocas. As
sarjetas em que nas madrugadas, depois de tomar teus definitivos,
ritualísticos, messiânicos porres, teu corpo, rendido sob o peso de sonhos
etílicos, buscou o conforto do leito perdido, desgovernado por tua cabeça em
que rondava (agora sabes, se é que já não sabias) a palavra-fantasma que passou
a te assombrar o espírito desde o instante em que tomaste ciência de sua
presença (que a partir de então foi tua única constante).
Também ao contrário dos teus livros.
Uns quase intactos, que, sabias (como sempre soubeste), ensinamento
algum guardavam para ti. Outros tendo a capa gasta por teu manuseio, ostentando
na lombada abcessos e estrias feitas pelas unhas dos teus dedos que
sofregamente saltavam as páginas, devoradas por teu olhar faminto – faminto do
desconhecido, faminto da vida.
(E esperançoso de que a próxima linha, a palavra vindoura finalmente
trouxesse a verdade que, sabias, sempre soubeste, te fora reservada por teu
fátuo deus – cujo maior deleite e único propósito era brincar contigo de
existir.)
Ao contrário, ainda, dos teus escritos, tão obsessiva, monotonamente
centrados nos temas que, pensavas, eram teus votos sacerdotais.
Ao contrário, ainda, das coisas supérfluas que sonhavas eliminar do
mundo.
Coisas supérfluas como chicotes de domadores de tigres, xícaras de
porcelana chinesa, cupons de concursos de carros e casas que caíam de revistas
e que, em tua incurável preguiça, tua niilista preguiça, assistias perderem-se
sob a cômoda enquanto te conformavas pensando, "lá se vai mais uma vez
minha sorte", castanholas que certa feita ouviras estalar nas mãos duma
vizinha castelhana que, sonhavas, viera da Andaluzia.
De tudo isso, são teus sapatos os mais reveladores.
Díspares, parecem não formar o mesmo par.
No esquerdo o salto por pouco não se consumiu de todo.
No direito, está quase todo inteiro.
Isso demonstra...
(Prova cabal, prova de todas as provas de que todos ao redor de ti
precisávamos! Para fazer o balanço dos teus dias. O levantamento das tuas
derrotas. O resumo dos teus rumos.)
...que, além de andares tortamente, andas dando voltas.
Um, amarrotado, sulcado de estrias, desbotado.
(Sinal claro de que não te empenhas suficientemente em te desviar dos
teus obstáculos ou evitar teus tropeções.)
O outro, quase novo – cromo praticamente incólume.
(Eis outra evidência: certamente não dás todos os passos que te compete
dar em tuas andanças.)
Acima de tudo revelam que ao longo de tua vida cada um dos teus pés tem
te levado por caminhos, não errados, apenas antagônicos.
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