Allegro poco mosso
Não tenho a quem escrever, vim escrever pra você. Esse impulso me leva e traz sempre que escuto a música. Meu refúgio. Efêmera trégua nas badaladas surdas da tarde. Você pensava que um cara feito eu não era dado a refúgios? Eu também. Sinal de que estou esmorecendo, talvez. Ou sinal de nada. Não sou dado a sinais. Ou não era. Sinal de que estou esmorecendo. Cirandinha, vem, me envolve e me roda. Vê a facilidade com que caio prisioneiro de refúgios e outras facilidades dos tempos. Qual pião, pião sem adjetivo nem cheiro ou história, quero rodopiar rodopiando até cair. Sem perceber que estou tonto. Nem me dar conta de que sou zonzo. Vim aqui te escrever porque preciso sustentar teu olhar expectante enquanto executo minha ciranda. É meu espetáculo, digamos. Pactuemos. Você espera que eu te escreva a verdade, provavelmente. Como, se a verdade reside só em teus olhos? Quer uma prova? Ei-la: noite de julho de 198... (Você sabe quando.) Cenário: Z. (Não tenho coragem de ser explícito a esse ponto — por isso estou fadado à sentença: você jamais me perguntará o que tenho a te dizer.) Personagens: você, eu e expectadores vários. (O mundo é sempre pródigo em expectadores. Eu, de todos, sou o maior.)
Tema: teu olhar.
Vim aqui te escrever hoje porque decidi
encerrar o assunto “minha Dor”. Também resolvi matar meus fantasmas. Rasgar
minhas fantasias. Vaporizar meus delírios, a choque. Deletar minhas lembranças.
Embaraçar meus caminhos. E apagar meu passado, do qual neste ato abdico e me
liberto.
Julho, eu disse? Não há, nunca houve
julhos em minha vida. Nasci em dezembro, perto do natal, interregno das férias
escolares (não sei sentir senão quando me sinto um ser humano em férias). Desde
que nasci nunca avancei além de março. Sendo veronil, o sol é minha égide, só
tenho vida enquanto afundo as solas dos pés na areia da praia, me fazendo homem
de palha o restante do tempo. Meu auge vital é o solstício de verão em algum
dia no meado de janeiro. Essa data, e poucos dias antes e depois dela, comemoro
bebendo desesperado, o que houver pra ser bebido. Nos demais dias do ano me
embebedo tentando adormecer e hibernar pra só retomar a vigília na volta do
verão. Por isso, naquela noite de julho, naquela gélida noite de julho em que
alguém sentado ao meu lado no balcão comentou que fazia oito graus, não me
achava exatamente no comando dos meus sentidos. (Faz de conta que não mencionei
o comando dos meus sentidos.)
Ébrio, estava. Mesmo quando durmo, estou.
Naquela noite flutuava distraído entre nuvens de isopor. Sentado à tua frente.
Copo de steinhäger esquecido entre os dedos no balcão. O vozerio produzido
pelas poucas dezenas de expectadores reverberando em pastilhas mnemônicas ora
dentro ora fora de mim. Vultos, personagens de outra dimensão — mas não
fantasmagóricos como depois daquela noite aprendi a enxergar vultos -,
deslizavam alheios à nossa volta. Enquanto isso, você falava, lembra? Que pena,
não sei, não aprendi a prestar atenção no que dizem enquanto durmo. Teus lábios
se mexiam, magnéticos como em todas as situações em que já os vi se mexer,
forjando, imagino, melífluas sentenças e períodos desprovidos de vírgulas,
pontos finais, interrogações e de qualquer outra pontuação. Tua fala é meu
paraíso, eu diria se fosse então capaz do diálogo. (Me diga, já dialogamos
algum dia? Duvido. Meu saber é patético ante a tua beleza, e costumo me calar
quando não sei que dizer.)
Cada um dos meus sentidos me puxava pr'um
lado e todos me puxavam pra você. Dividido em dez, quinze pedaços, eu era tua plateia.
Cada um deles, pedaços, estava atento ao palco da Z. à sua maneira. Se foi
assim de fato, por que me lembro só dos meus olhos? (Sou escravo do olhar, qual
fotógrafo sem energia para a música nem gana de saciar o apetite.)
Vou me dividindo geometricamente à medida
que tento descrever tua figura sentada à minha frente no balcão. Qual sentido
devo usar agora? Meus olhos não desgrudam do teu rosto, imobilizando consigo
meus pensamentos e minha lembrança. (Pergunto: seria uma dádiva a capacidade de
esquecer por livre arbítrio?) Meus ouvidos estão ocupados do burburinho dos
bebuns em volta, atingindo ocasionalmente picos distorcidos, quando, bem ao meu
lado, um deles pede “mais uma cerveja” ao balconista, que berra “mais uma
cerveja?” de volta. Dentro da minha boca, muda na efêmera noite de julho que
hoje não estou certo se ocorreu de fato, o steinhäger não deixa espaço sequer
pro gosto de mim mesmo. (De que não sei se gosto.) Meu olfato, mesmo tomado dos
odores peculiares de álcool, suor, sanduíche de queijo e mortadela, estava
saturado do cheiro que teria tua buceta em minha imaginação. E minha mão,
aquela que não segurava o copo, delirava com a textura da tua pele e minha
língua se enchia d'água ávida por lamber a tua.
A noite veio passando longa feito a
eternidade e desvaneceu curta qual um instante. De repente você diz, “preciso
ir”, despenco, cheiro, escuto, imagino, engulo o steinhäger de gelo. Vejo teu
olhar. Anti-sol que obscurece minhas noites.
No meio do breu você, lâmpada fantástica,
brilha à cegueira, espargindo um halo não luminoso, de raios negros, corroendo
minha claridade à tua volta, me atraindo ao teu campo de beleza inatingível e
me condenando à escuridão que aprendi a habitar. Eu, mariposa trajada em
fantasia de seda puída, destituído da cabeça que um dia arranquei tentando
estancar a mina de pensamentos que borbotavam e borbotavam para o vácuo que
ficou no teu lugar, me arrasto em círculos incessantes em torno de não sei
exatamente o quê. Terá a luz se apagado e eu, mariposa decapitada, nem me dado
conta?
Eu disse que não ia falar da Dor, eu sei.
Acho mesmo que tinha prometido nunca mais citá-la em dê maiúsculo. Afinal não é
nome próprio. E nem de país ou feriado. Não faz diferença, provavelmente.
Tampouco faz falar ou deixar de falar. Mas se tenho algo a dizer — tenho? -, o
que tenho a dizer é pra você. Se não te falasse dela, maiúscula ou minúscula,
falaria de quê? A única alternativa seria o vácuo.
A música, aquela, nunca mais escutei.
Tudo que consigo é pensar nela, como se fosse uma abstração. Agora terminou.
Não é possível que torne a tocar outra vez.
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