Tenho medo de virar fanático, Susan

Aos quatro anos a primeira pergunta da vida. Dúvida-falo. Deflorou irremediavelmente algumas raras e ralas ilusões-hímen que jamais se abrigaram aconchegantes em cérebros-bucetas. Por que nascer?

Ele crispou os lábios, desviando o olhar naquela expressão de animal atormentado e arisco de que os olhos viriam a ser testemunhas dia após dia na relação de progenitor desajeitado e inepto versus filho impaciente e intolerante, expondo um seu lado amargo e, intratável, e que, desempenha papel importante nesta incapacidade de encarar dores. Aguardou alguns segundos para fingir que estava pensando numa resposta, por dentro provavelmente implorando que a pergunta feita pela boca contorcida de raiva fosse apenas uma bobagem infantil, torcendo para que a cabecinha fantasiosa providenciasse rapidamente uma outra, agora amena, menos visceral, tipo pai, existem números depois de cem? mas, olhos olhando de soslaio com olhinhos desamparados - e então percebeu-se tudo que significa um olhar de soslaio, produzindo um conformismo covarde com a ideia de que enxergar de relance em meio à bruma dum padecimento amorfo é suficiente -, dando-se conta aflito de que nada mais escaparia da boquinha torta, pigarreou como sempre fazia em situações incômodas e sem nenhum outro gesto supérfluo saiu do quarto, deixando olhos olhando paredes atônitos e a certeza de que - hélas! - a mosca fora acertada.


Quem nunca olhou para o pai e tascou na bucha, por que você me fez nascer? Quando a pergunta é feita já não há resposta. A única opção é dar as costas e fugir ou balbuciar três sílabas incompreensíveis como se a clareza da resposta não fosse importante. Ou -única atitude conveniente - silenciar.


Atos e fatos prosseguiram normalmente por alguns dias e a memória tenta lembrar que papai sem mais nem por que pegou no colo o infante infame e jurou que nunca mais o largaria.


Muitos anos depois, já adulto, quando tocou no assunto, mamãe disse, você não saía do colo dele. Mesmo doente, quase cego, o velho te levava para cima e para baixo como que condenado a pagar um pecado. Quando você fez cinco anos comecei a tentar dissuadi-lo de deixar de te carregar feito um fardo. Ele não dava importância, dizia que te levaria até teus trinta anos se fosse preciso, te conduziria à escola na infância e quando crescesse, ao trabalho, ao cinema, ao futebol, peregrinaria dezenas de milhões de quilômetros por todo o país ou onde quer que fosse até você cansar ou morrer e se um dia você decidisse sair do colo dele espontaneamente, nesse dia ele abriria aquela garrafa de vinho que vinha guardando desde moço e os s fariam um brinde à tua maturidade, que he ain't heavy, he is my sooon, não ligava para o que os outros diziam, que dissessem, o problema era seu e dele, todos os pais querem fazer isso com os filhos mas não têm coragem, que o pai dele também teria feito por ele se tua avó tivesse deixado, mas o pai não sabia impor a vontade, deixava que tua avó tomasse as decisões por ele, eu devia respeitar a vontade dele, muito pai por aí fazia coisa bem pior, tinha filho depois desaparecia, tinha filho depois espancava, tinha filho depois massacrava, tinha filho e deixava se perder pelo mundo, se tivesse mais de um filho carregava também, e mais outro e outro, quantos fossem, feito macaca, que o ser humano não sabe cuidar da prole, só os animais, ninguém podia garantir que estivesse errado, você provavelmente se daria melhor que as outras crianças, teria mais autoconfiança e fé e obediência ao que cada um de nós tem de sagrado e consciência de suas forças e de suas fraquezas e equilíbrio e para atingir o conhecimento, se é papel da mãe incubar o filho durante a gestão cabe ao pai cercá-lo de cuidados e proteção enquanto ele não puder andar sozinho, filho dele - você - era tudo que ele possuía na vida, nada mais importava, o que é material sempre se pode obter de uma ou outra forma, mas um filho não, perderia o que fosse preciso para não te perder, que continuaria assim enquanto fosse necessário, só te abandonaria quando não tivesse mais forças, no último dia de sua existência, que se ficasse definitivamente cego, você seria seu guia e assim juntando forças poderiam ir aonde quisessem e sim estava ficando cansado mas não esmoreceria, afinal você não teria tantos lugares para ir e sim te levaria à tua lua de mel, à cama da tua amada na tua primeira noite, te levaria e nunca exigiria nada em troca, talvez apenas a primeira enrabada na tua esposa.


Não é nada disso, mãe, ele quis me tirar do colo aquele dia em que viu as meninas rindo quando chegamos ao jardim da infância. Esperneando, me leva, me leva, os braços agarraram o pescoço dele. Ele segurou firme, soltou, procurando armar um sorriso encorajador, repetindo, ande sozinho. E volte sozinho para casa. As pernas tentaram, não conseguiram vencer nem a metade do caminho. Numa esquina, a bunda sentou na beira da calçada e o corpo ficou lá horas esperando ele ir buscar.


No dia seguinte ele chegou em casa com uma cadeira de rodas, que delícia. Dois meses depois, muletas. Não é fácil andar de muletas. Quem vê e pensa que é está enganado. Precisa treinar. Paciente, ele aprendeu primeiro para poder ensinar, repetindo tudo tem jeito. Seis meses se passaram assim.


Papai tentou ser escritor, se metia ora secreta ora ostensivamente em empreitadas literárias mas nunca avançou além duns cadernos que guardava zelosamente na primeira gaveta do guarda-roupa e a que não se deu muita importância até o dia em que se decidiu ser escritor, não apenas para consumo doméstico feito ele mas um de verdade, com obra publicada, discutida na imprensa, aplicada nas escolas, com entrevistas na tevê e palestras em encontros literários, correspondência com outros grandes escritores do país e d'além-mar e tradutores que verteriam os romances para dezenas de idiomas esdrúxulos (e pedir-se-ia aos editores que dessem um exemplar de cada um deles para depois se espantar com as peripécias gravadas em caracteres exóticos), o povo carregando nos ombros pelas ruas do Rio até a sede da AML, afugentando os guardas com seus cães ferozes, derrubando os carcomidos e enferrujados portões do velho prédio, acuando os acadêmicos que relutavam em aceitar a supremacia da obra sobre a biografia do autor e entronizando triunfalmente na sagrada cadeira de Machado, repórteres assediando em busca de depoimentos solenes sempre que se avizinhasse uma complexa crise política ou econômica ou se abatesse sobre o país inesperada tragédia natural, furacão que varresse do mapa milhares de casas dizimando milhares de pessoas, enchente que inundasse centenas de cidades e também dizimasse milhares de pessoas, cada depoimento repercutindo na imprensa semanas a fio, se extinguindo vaga, silenciosa e paulatinamente até que novo fato momentoso viesse a suplantá-lo, exigindo novo depoimento emoldurado em pessoalíssima visão lírica do mundo e suas tolas mas indefectíveis idiossincrasias mais ou menos além da capacidade humana de compreender. Adulto, sacou-se que ele nos usava para se inspirar. O resultado foi nojo e confusão.


Para ele havia os de índole humilde, cientes de sua pequenez, que chegam e de cara aceitam o mundo como é, sabem aproveitar o que já foi feito, não aspiram a inventar a pólvora, não pretendem incorrer nos mesmos erros de seus antepassados; e havia os arrogantes, para quem nada nunca está bom, o mundo é um grande equívoco e deve ser corrigido quanto antes, se possível por cabeções feito eles, gente disposta a padecer o que for para enfrentar a empreitada descomunal. Logo a alma saponácea viu que ele era da segunda turma. Quanto a si, procurou-se não tomar partido.

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