Projeto para viver

Literalidades

(talvez nem tudo esteja perdido)

Alguns pensamentos, princípios e emoções que vimos guardando desde quando acordamos na vida se assemelham àquele parafuso que ocasionalmente achamos num canto qualquer da casa ou na rua e nos damos o trabalho de agachar, apanhar e meter no bolso.
Quem sabe essa porcaria um dia vai me resolver um problemão numa hora de aperto? pensamos meio a contragosto mas satisfeitos com nossa própria previdência.
Então, levados pela inércia, durante alguns momentos acalentamos o que há de bom dentro de nós, acreditamos que vale a pena interferir no curso dos acontecimentos, nos convencemos da nossa própria viabilidade. A sensação é deveras rara e valiosa, precisamos alimentá-la para que não se esvaia feito um fio d'água deslizando na terra seca. E assim, tomados de repentino gosto pelos cálculos, começamos a somar crenças que não sabíamos existir, a limpar da cabeça um incômodo niilismo que em algum lugar persiste intocado. E por reles momentos nos orgulhamos da nossa própria sapiência, até com uma ponta de desprezo por pessoas que são menos precavidas do que nós.
Daí em diante, podemos escolher entre dois caminhos: 
a) continuamos a zanzar pelo nosso mundo de sempre, carregando no bolso o parafuso qual um vade mecum, meio esquecidos do motivo que nos levou a apanhá-lo. Um dia nos cansamos e o deitamos fora, irritados com a mania de nos apegarmos a objetos que, por terem cor, peso, cheiro, substância, por poderem ser recolhidos e sentidos dentro do nosso punho, servirão de contrapeso à arisca esperança que teima em desmilinguir, ou
b) na primeira oportunidade, o largamos distraidamente numa gaveta qualquer. Assim, damos continuidade ao ânimo que nos levara ao apanhá-lo do chão. Realimentamos a fugaz sensação de viabilidade que naquele momento tinha um lugar no projeto que fizemos de nós mesmos.
Se escolhemos a segunda opção podemos até mesmo celebrá-la como um segundo passo concreto em nosso projeto e então o cálculo recomeça: mais uma pá de fertilizante, outra abrangente mirada até nossos horizontes, mais outra espiada dolorosa em algum lugar dentro de nós. Talvez nem tudo esteja perdido.
Passado certo tempo, suficiente para nos esquecermos de que somos prevenidos, um dia abrimos a gaveta. Mais uma vez, estamos sozinhos com nossa solidão, exercendo nosso papel de procura. Dentro da gaveta vemos o caos — nosso caos particular —, formado das quinquilharias com que matamos o interminável tempo de que dispomos e do qual não sabemos o que fazer. Sempre que abrimos a gaveta nos dá vontade de dar fim naquela tralha, mas outra vez somos vencidos e fingimos enxergar um valor em cada caixinha, cada botão, cada clip, alfinete, resto de lápis, papelzinho dobrado... e o parafuso.
Ah, eis minha salvaguarda! pensamos aliviados, sentindo algo cutucar em algum lugar bem no fundo. É um vago sentimentozinho que sabemos estar ali mas que nunca identificamos claramente — mais um diamante de brilho opaco no tesouro que roubamos de nós mesmos.
Um dia ainda arranjo uma utilidade para essa porcaria!
E fechamos automaticamente a gaveta.
Engavetados, esses pensamentos, princípios e emoções são nossa reserva. Guardam a origem do que somos e do que queremos ser, nos habitam invisíveis, intrusos e ausentes, reinando insuspeitos e acalentados em nossa cabeça, totens inteiros a nos provar que somos incompletos, bica de esperança não sabemos de quê.


Nenhum comentário:

Postar um comentário