Bom, antes de entregarmos toda a trama já no
título, façamos um... é... hã... retrospecto.
Era uma vez um menininho chamado Jorginho.
Igualzinho a todos os priminhos, amiguinhos, coleguinhas, etc.
Igualzinho coisa e tal exceto num d... de...
detalhe... um... digamos... fisiológico.
Mais que detalhe, era... era... uma... uma ca...
ca... cara... característica!
Sim, uma verdadeira característica fisiológica.
Mas que não era suficiente para atrair jornais sensacionalistas, gerentes de
zoológicos determinados a aposentar o velho leão desdentado e raquítico que
quando muito causava comiseração no público ou donos de circo ávidos por
armar uma lona em torno da primeira aberração que pudesse chamar a atenção de
meia dúzia de degenerados ou débeis mentais.
Nada disso, pessoal. Jorginho tinha apenas uma
ligeira diferença com seus priminhos, amiguinhos, coleguinhas, etc. Tão
ligeira, que quase passava desapercebida. Jorginho tinha um... um... Bem, não
vamos revelar ainda a diferença, senão é capaz de estragar o... o... hã...
suspense!
Agora que já dissemos que ele era um menininho
diferente, precisamos retroceder ainda mais um pouco.
Bom, em vez de retroceder um pouco, voltemos tudo
duma vez, até o dia em que o s... s... singular Jorginho nasceu.
O desgraçado nasceu feinho como nascemos todos
nós seres... hã... humanos. Sabe como é: carinha de quem veio ao mundo já
velho, com experiência de vida quase ancestral, cinismo atávico, olhos
despropositadamente grandes e intrusivos, duma curiosidade onírica e ao mesmo
tempo um quê de fantasmagórico, te olhando ominosamente como se adivinhasse
teus segredos mais inconfessáveis, arzinho de quem chegou mas não queria ter
chegado (e pior, sem bilhete de volta), jeitão de quem te trouxe uma mensagem
dum mundo estranho e...
Bom, quem já viu um recém-nascido sabe como é.
Como todos os demais bebês daquela maternidade e
de todas as maternidades do Brasil e talvez do mundo, Jorginho foi submetido
a uma ba... hã... ba... bateria de exames. Os médicos examinaram tudo de tudo
que era jeito, propósito e grau. E constataram que, apesar da carinha de
mini-totem que todos nós etc. e tal, ele era... era... era...
Bem, antes de revelar o que Jorginho era, peço
que tenham mais um pouco de paciência e me permitam um breve parêntese.
Jorginho, tendo nascido zi... zi... ...zinho como
ele só, passara dois ou três dias na maternidade, sob cuidados de prestimosas
e garbosas enfermeiras que, como todos vocês sabem, reinam imperiais na
fantasia de muitos marmanjos sem-vergonha e doentios por aí.
Mas é bom ressalvar desde o início, para que
depois não me acusem de sofista mau-caráter: quem está pensando que a aludida
característica tem algo a ver com... com... hã... e que a diferença de
Jorginho era tamanha, que... que... um... embora, também é bom que se diga
desde já, algumas das mencionadas enfermeiras, no seu mais profundo íntimo,
tivessem pensado “Oh!” e dois dos enfermeiros — homens feitos — até se
entreolharam com cara de cumplicidade e exclamaram: “Ai! Ui!”, bom, quem
estiver pensando isso ou qualquer outra coisa, que pense o que quiser, pois
vivemos num país democrático em que todos temos direito ao livre arbítrio, se
é que o amiguinho leitor e a amiguinha leitora me entendem.
Fechado o parêntese, continuemos.
Todos na família de Jorginho estavam felizes. O
pai do... hã... Bem, o pai era um orgulho só. “Um varão, um varão!”,
regozijava-se. (E antes que me acusem de desvirtuamento ideo/mercadológico,
devo dizer que... um... ãn..., recomendando que vocês... hã... Bom, vocês
sabem.)
A mãe... Bem, a mãe não cabia... hã... um... em
si de... fe... felicidade.
Por alguns dias a rotina cedeu lugar ao
inebriante espírito novidadeiro. A mãe, que antes não podia ver a sogra nem
pintada de... um... o... ouro, agora deixava a velha trocar as fraldas do
bebê; o pai e o sogro (do pai, não de Jorginho, que ainda não se casara), que
antes... bem, nutriam ódio quase mortal um pelo outro, agora trocavam olhares
enternecidos e até... hã... Resumindo: a família estava em festa, e mesmo
parentes de quem não se ouvia falar havia décadas apareceram para dar
boas-vindas ao guri.
Com o interminável entra-e-sai e a reviravolta na
casa causada pela chegada do... um... recém-nascido, ninguém se deu conta de
que... hã... um... sabe como é... tem coisas na vida que as pessoas custam a
ver (e muitos, quando vêem, vêem mas não querem acreditar...).
Algumas semanas depois, o pai de Jorginho e o
sogro do pai de Jorginho estavam na sala falando algumas dessas abobrinhas
que todos estamos fadados a falar mais dia menos dia quando escutaram um...
um... lan... lancinante berro vindo do banheiro. Puseram-se incontinenti em
pé e correram para o... hã... banheiro. E o que viram ficaria marcado em suas
mentes por to... todo o... o... se... sempre: depararam com a sogra da mãe de
Jorginho encostada na parede do bóx cor-de-rosa, mãos tapando a boca, olhos
arregalados fitando pas... pas... pas... pasma a criança que... que br...
bri... brin... brincava na banheirinha plástica!
O pai e o avô (de Jorginho) olharam para a sogra
(do pai) e mulher (do sogro) e exclamaram:
— Oh!
O avô, de tão desconcertado, deu um passo para
trás, como se quisesse guardar distância segura. O pai, por sua vez (dele
pai, não de você aí amiguinho leitor e cara, caríssima amiguinha leitora),
deu um passo à frente, querendo olhar mais de perto. (O que prova, amiguinho
leitor e bilolotinha do papai, que embora ambos tivessem exclamado “oh!”,
fizeram-no levados por razões obviamente distintas e, ao que parece, mesmo
antagônicas.)
A mãe de Jorginho, que estava no quarto lendo no
jornal a última piada do Veríssimo (Veríssimo que, diga-se, era para a mãe de
Jorginho o ideal literário de todas as mães do Brasil), e que já ficara de
sobreaviso ao escutar o berro lan... lan... um... lancinante da avó de
Jorginho, ficou decididamente alarmada com o “oh!” exclamado pelo pai e pelo
avô de Jorginho e saiu desembestada pelo corredor do andar superior (pois,
embora ainda não tenhamos tido a oportunidade de descrever a casa de
Jorginho, tratava-se dum sobrado, localizado... hã... Bem, não vem ao caso no
momento (afinal, pra que haveríamos de publicar o endereço do miserável? Só
pra você, amiguinho leitor e curiosa lolitazinha, irem lá e acabarem com a
raça do infeliz?))), perguntando aos gritos:
— Que foi? Que foi?
Avistando o sogro, que, recostado à parede do
corredor, olhava atônito para dentro do banheiro, a mãe pôs as mãos no peito
(que, cá pra nós, amiguinho leitor e deliciosa lolinha, não era de jogar
fora, ainda mais com as mamas intumescidas que estavam de leite) e gemeu:
— Ai! Acho que vou desmaiar! (E olha que ela
ainda nem tinha visto o que os demais tinham visto no Jorginho. Imaginem só
quando visse!)
— Não é nada demais, benhê! — disse o marido, que
saíra do banheiro ao escutá-la. — Está tudo oquêi. Sua mãe é que faz
escândalo por nada...
Sem querer acreditar nas palavras do pai de
Jorginho, ela correu para o banheiro e olhou. E olhou para a mãe, que
continuava encostada na parede do bóx cor-de-rosa, ainda pasma, olhos ainda
arregalados. E olhou novamente para a... a... criança. E pôs a mão sob o...
hã... um... queixo, matutando.
Matutou, matutou, até que disse:
— Bem, até que não é tão mau assim.
Passaram-se alguns meses. (Sei que parece meio
rápido, mas, sacumé, Jorginho tá com pressa.)
Jorginho ficava cada vez mais um... hã... ca...
característico. Na família não se falava de outra co... hã... coisa.
Não demorou muito e virou o assunto um... pr...
pre... pred... predileto do bairro. Depois, coqueluche da cidade. Depois,
febre do país.
O bestinha (que ainda era bebê, e bebê deveras
chorão, mas que recebera o apelido de “bestinha” por mero acaso e não por ser
aleijado ou coisa assim) nem bem completara um ano e já ficara conhecido,
vejam só se pode, como Jorjão.
Vinha gente de longe ver. Desconhecidos se
aglomeravam na porta da casa. Alguns até a forçavam o portão. Outros pulavam
o muro (que o pai de Jorjão foi obrigado a levantar e guarnecer daquelas
lanças espanta-ladrão).
Todos queriam conhecer a criança diferente. O
jornacional dedicava quarenta minutos ao tema todas as noites. A notícia
corria o mundo. Choviam jornalistas de todas as partes. Carretas gigantescas
carregadas de toneladas de equipamentos televisivos estacionavam diante da
casa. O pai de Jorjão erguia cada dia mais os muros, que já atingiam vinte
metros de altura.
O avô, que sempre tivera queda por tirar proveito
do que quer que o destino lhe oferecesse e que não era muito chegado ao
trabalho duro, começou a dar entrevistas, cobrando três paus por cada uma. Em
apenas uma semana já não havia mais vaga em sua agenda pelos próximos três
anos. Contra ordens expressas do genro, que preferia aguardar que a febre
popular atingisse o zênite antes de revelar a criança para as câmaras de
tevê, o velho arrumou uma polaróide e às escondidas tirava fotografias de
Jorjão, vendendo cada uma por dez paus. Logo o espertalhão começou a pagar
cerveja para todo mundo na padaria e ensinar aos amigos como trilhar os
misteriosos caminhos da prosperidade.
A avó assistia a tudo e balançava a cabeça,
condenando em tom fatalista:
— Isso ainda vai acabar um... hã... mal! Muito
hã... mal!
A mãe estava confusa. Pressentia que aquilo tudo
não estava certo. E pior: que nada daquilo não estava errado. Sua mãe (mãe
dela, etc.) talvez tivesse razão. Por outro lado, precisavam reformar a cada
da praia. Não que tivessem uma, mas sabia que teriam de reformá-la quando a
tivessem. E quando essa hora chegasse, que fariam sem dinheiro? E que dizer
das novas cortinas da sala, das viagens a Miami, das doces tardes que sempre
sonhara passar no chópingue igual às madames do bairro?
Quanto ao pai do porqueirinha, esse mirava o
futuro com olhar longo e manso de quem vê o navio da felicidade despontar no
horizonte, abarrotado de contêineres cheios de bufunfa, singrando celeremente
os mares rumo ao porto seguro da riqueza. O jornacional telefonava de manhã à
noite querendo filmar o bebê-sensação. To dia tevês, revistas, jornais do
mundo todo enviavam cartas, telegramas, emails às dezenas, às centenas, aos
milhares, às dezenas de milhares e assim por diante. Universidades
solicitavam testemunhos. Empresas ofereciam até vinte paus por palestras.
Políticos assediavam para que o dito-cujo se candidatasse a vereador,
deputado, etc.
Para lidar com tantos contatos, o pai contratou
uma secretária, que logo contratou outra, que contratou outra, que... bem...
contratou outra.
A sala de estar do sobrado converteu-se em
central de atendimento, com dezenas de funcionários se acotovelando em quinze
metros quadrados. Em poucos dias alguns deles tiveram de ser transferidos
para cima. Os avós foram obrigados a cair fora para ceder espaço aos
operadores de computador. O banheiro debaixo foi ocupado por motobóis. Quando
não havia mais um só centímetro disponível, o pai de Jorjão contratou uma
construtora e mandou erguer mais dois andares na casa.
A rua foi interditada pela prefeitura. Brotava
gente de todos os lugares, de todas as nacionalidades, de todos os costumes:
homens de saia, mulheres de burca, homens e/ou mulheres com longas túnicas de
seda, grupos trajando ternos negros feito as asas da graúna e uma multidão de
cu... um... hã... curiosos.
A polícia viu-se obrigada a ampliar a área
interditada. O secretário de segurança exigiu que os moradores do bairro
usassem crachás de identificação. Os vizinhos começaram a reclamar dos
transtornos — a gritaria, a correria chegavam a níveis quase insuportáveis.
A turba aglomerada diante da casa exigia aos
berros:
— Queremos ver Jorjão! Queremos ver Jorjão!
O pai era obrigado a sair à porta e pedir calma,
explicando:
— Ainda não chegou a hora! Dentro de alguns dias.
Esperem só mais um pouco!
Entrementes, Jorjão, que não tinha nem quarto,
nem berço, nem nada, continuava a brincar na banheirinha plástica.
Um dia o pai recebeu um visitante que
simplesmente não podia dispensar. Era um emissário do presidente da
república.
— Vamos entrando, doutor. Vamos entrando!
O homem, limitando-se a fazer um gesto seco com a
cabeça, preferiu adentrar em vez de entrar, pois que se tratava d’autoridade.
E sem se dar o trabalho de sentar na poltrona que o pai lhe indicara, meteu
na bucha:
— Ou o senhor revela o menino ou vamos resolver
na marra!
Atônito, o pai de Jorjão caiu sentado na poltrona
que oferecera ao emissário. Depois de meio minuto incapaz de reagir,
perguntou:
— Mas por quê? Ainda não... não...
— O presidente perdeu a paciência! Quer ver o
menino na tevê amanhã!
Dizendo isso, o emissário deu as costas e
retirou-se.
O pai de Jorjão subiu correndo as escadas e
chamou a mulher.
— E agora? — perguntou depois de contar o ocorrido.
– Agora é fazer o que disse o presidente — a
mulher recomendou, ponderada que era.
Vendo que de fato não tinha outra opção, o pai
chamou a secretária e ordenou:
— Ligue para o jornacional. É chegada a hora!
A secretária mal acabara de desligar o telefone
quando escutaram a colossal carreta da tevê roncando em frente a casa,
acelerando e jorrando fumaça quinze decassílabos de gás carbônico intoxicante
no ar feito um animal impaciente.
O porteiro abriu a porta para repórteres e
cinegrafistas.
— Onde ele está? — o chefe da equipe quis saber.
— Aqui em cima — o pai disse, surgindo no alto da
escada. — Venham!
Todos saíram em disparada escada acima, galgando
os degraus de dois em dois, três em três e quatro em quatro, dependendo do
tamanho das pernas.
E então, chegando ao bã... bã... banheiro...
Pois é, leitorzinho amigo e leitorzinha amiguinha
fofudinha. Você já pode adivinhar o que aconteceu. Infelizmente é assim que
as coisas são na vida real. Se isto fosse uma fábula fabulosa e não um mero
relato factual, poderíamos ter inventado um happy ending bem mais
happy. Mas sabe como é...
|
A incrível história do menininho
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Ahhhhh Ahhhhh pena que acabou não acabando ando ando!
ResponderExcluirE vem cá, me diz uma coisa, Vai tê cuntinuação?!
Se lesse com a devida atenção, a sra. teria visto que bastaria adivinhar o que aconteceu eu eu.
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