Perverso


Literalidades


Corpo deitado, o olhar desliza para os lados buscando distração. Quem dera alcançar o supremo milagre dos ansiosos: não pensar.
De repente, uma das folhas da veneziana é empurrada pelo vento, deixando o quarto ser invadido por um facho de luz que divide a penumbra ao meio. O olhar promíscuo mas cansado, que não quer enxergar mais, é arrastado contrafeito para o espetáculo fotoelétrico.
Súbito festival vespertino. (Sim, a tarde está na metade — o que não faz diferença para os olhos, para a luz, para ninguém.)
Relutantemente seletivo, ele, o olhar, perscruta a fita luminosa. Quer algo mórbido que possa refletir, descobrir como familiar.
Desapontado, inventa uma pradaria, vacas e bois aqui e ali, pingos alvos no verde frágil. Talvez veja tolices suficientes para desistir.
Mas ele insiste na dolorosa faina.
Insiste, insiste, até avistar os minúsculos astros de pó que, ao contrário dos planetas de verdade, viajam imprevisíveis em órbita irregular, errando pelo iluminado firmamento hexagonal que atravessa o quarto.
Ele não perde tempo. Gruda eletrizado numa das partículas, cuidando para não perdê-la de vista. E em seguida começa a acompanhar também uma outra.
E forma par.
A voz quer protestar. Mas a cabeça põe-se a trabalhar obediente.
Num dos planetas, tomando o rumo do chão e girando tresloucado como se gritasse por socorro (predestinado à auto-extinção), estou eu, minha voz, meu olhar, minha cabeça, meus restos.
Noutro, mais garboso, nonchalant, desfilando autossuficiente em direção ao teto, está você. Inteira.
O agora desvairado olhar pula frenético entre as duas partículas, tentando monitorar seus cursos antípodas.
Ela, a cabeça malsã, deusa de todas as coisas, zeladora incansável da poeira que viaja inexorável neste quarto e em todos os quartos, põe-se a rodar em sua órbita desembestada.
Forças tentam-se reunir.
O fôlego quer estufar o peito, soprar redentora ventania sobre o infernal espetáculo em que me enfiaram.
Sugar firmamento. pó. eu. Você.







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