Pré-paraíso

Literalidades

De repente algo estranho. Aguço os ouvidos, atento às imorredouras manifestações do ambiente. Carros ainda passam na rua. Crianças na vizinhança ainda fazem o habitual alarido. Aviões ainda cruzam o céu. Alguém ainda escuta música sertaneja ao longe. Bem-te-vis assobiam tecendo a manhã nesta bela masmorra.
Os sons estão todos no lugar. 
Olho o quarto – paredes encardidas como o são há anos, as coisinhas miúdas com que me entretenho dia a dia cada qual no lugar errado como sempre estiveram, as folhas das venezianas misteriosamente manipuladas pelo vento que teima em tê-las entreabertas. E lá fora também tudo parece estar como sempre esteve. E o mundo também continua parado fazendo de conta que gira.
Então olho para dentro. Espanto! Não há nada aqui. Onde estão minhas aflições? Olho de novo, com mais vagar. Cadê aquelas sensasõesinhas intangíveis que me mantinham permanentemente alerta sem saber contra o que, as fieiras de sirenes e luzinhas alarmantes desfilando incessantes – dentro deste familiar pavilhão? Cadê os sinais de atenção, cuidado, não-baixe-a-guarda?
Atento mais demoradamente. Dou por outras ausências. Minhas dores – cadê minhas dores? Onde está a infalível solidão que fazia parte de mim tanto quanto estes braços pálidos, estas pernas tíbias, e sem a qual não posso viver? E o árido sentimento de abandono que me acompanha desde que existo? E todas aquelas imagens variegadas de terror que sobrevoavam os negros céus da minha imaginação às que, de ominosas, nunca ousei dar formas ou cores nem chamar pelo nome? 
Noto ainda outras faltas. Os medos. Onde estão Eles? Todos aqueles… aqueles… aquilo que fazia de mim permanente refugiado de lanças invisíveis, exilado em inefáveis ilhas sem margens nem horas, fugitivo de assassinos sem rosto obcecados por matar o que sempre foi morto, ladrões encapuzados ávidos por roubar o que nunca foi meu, temores que me tornavam eterno persona-non-grata das minhas assombrações, desterrado em minha terra, perseguido em meu esconderijo?
E as velhas tentações intoleravelmente extravagantes de cometer o mais hediondo dos crimes para pôr um fim definitivo à angústia de ser livre?
E as indefectíveis vontades de amor, de boceta, de doce, de dinheiro, de ser bacana, de ser picasso, presidente, piloto, de dizer mãe, eu estou aqui?
E os pesos do passado? Que fim deram os grilhões a me acorrentar ao ontem infinito? E as escassas alegrias descascando do espírito feito gesso do teto, as partidas de futebol em que eu era a bola?
E os filmes em branco? Onde estão todos aqueles filmes em branco que assisti na infância?
Sacudo a cabeça, tudo volta ao velho estado de normalidade premeditada. Em seguida atento novamente. Como se tivesse entre os dedos um botão de sintonia fina, experimento para um lado: nada. Para o outro: nada. Todas minhas velhas aflições estão extintas.
Por um segundo me passa um frio no estômago, penso no pior. Me sintonizo de novo. Não, estou bem. Ufa. Estou bem.
Ter perdido os lastros das minhas dores me deixa leve. Parece que vou flutuar. Não, já estou flutuando. Se amolecer posso sair voando pela janela. Algo no fundo fala "realidade". Não me enche o saco, é só o que peço.
Os alarmes não vão disparar. Está decidido. Não permito. Estou no comando agora. Pelo menos alguns minutos vou flanar, velejar, esquiar, tudo que sempre quis fazer e nunca fiz.
Então isso que é plenitude? A ausência da noção do tempo. A percepção repentina e esmagadora de que não necessito andar. Para quê? Coisa besta. Para que corrigir, reformar, apagar os incêndios, buscar abrigo dos raios? Para que perguntar? Não quero mais castigos e festas. Para que falar?


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