...e Johnny e outras coisinhas exóticas
Terça à tarde, Humam, pai de Sadiq, chegou assustado do mercado e se
atirou no sofá. Arquejava. Escapara por um triz. Saiu do mercado alguns
segundos antes que uma bomba fizesse a velha edificação em pedaços. Sadiq
ouviu aterrado, tentando engolir em seco. Não tinha mais saliva. Abriu a
boca, pôs a língua fora, procurando umedecê-la. O ar exterior parecia querer
consumi-lo. Sadiq olhava em torno buscando algo ou alguém que lhe desse um
refresco. "Trégua", pensou. "Por Alá, trégua".
Quando o susto passou, Humam começou a falar estranho. Se pôs a contar
uma história que a princípio parecia não ter pé nem cabeça para Sadiq. Humam
disse que quando Haythim, o filho de Salah, nasceu há 13 anos, ele, Salah,
saiu na rua aos berros, dizendo que estava com vontade de tocar um gongo,
como se quisesse anunciar a Alá e ao mundo o nascimento do filho. Queria que
tudo em volta reverberasse tal como ele estava vibrando por dentro. Era muito
forte. Precisava partilhar com os outros. Naquela manhã o casebre de Salah
virou escombros. Salah, Haythim, a mulher e outros filhos estavam mortos. Por
pouco a granada que atingiu a casa dos vizinhos não destruiu também o casebre
de Sadiq. Enquanto pensava em Haythim, seu amigo, e escutava a história
estranha contada por Humam, Sadiq pensava que só queria chorar. Mal conseguia
se lembrar do choro e de como era chorar. Estreitava os olhos ─ as lágrimas
não vinham.
Johnny não vê a hora de atingir a idade legal mínima, se alistar,
botar as garras no volante dum Abrams. Sempre foi fissurado por tanques de
guerra. Se orgulha do bom conhecimento que tem deles. Sabe, por exemplo, que
o melhor da Segunda Guerra foi o soviético T34. Certo, há controvérsias. Para
Bobby, seu colega de escola mais chegado, o melhor foi o alemão Panther. Nada
a ver, Johnny ri quando Bobby diz isso. O Panther não era páreo para o T34 em
termos de mobilidade, poder de fogo, blindagem, confiabilidade e, acima de
tudo, velocidade. É só comparar. E o Panther tinha um calcanhar de Aquiles: a
complexidade de projeto. Assim como na área automobilística e na naval, a
engenharia alemã sempre foi incapaz de desenvolver produtos simples, de fácil
manutenção. Não é à toa que um Mercedes da década de sessenta incluía nada
mais, nada menos que 15 mil peças, ao passo que um Chevy americano, apenas 5
mil. Tudo que alemão faz é complicado. Basta ver a filosofia. Mas esse é
outro papo. O que interessa hoje em dia é o rei do pedaço, o M1A1 Abrams ─ joia
da tecnologia descomplicada e eficiente de Tio Sam. Simplesmente perfeito. Se
fosse fabricado nos anos quarenta a Segunda Guerra teria acabado 3 anos mais
cedo.
O M1A1 Abrams é construído em blindagem de urânio empobrecido
revestida de aço laminado. O urânio empobrecido é dos materiais mais
eficientes em termos de proteção contra os armamentos desenvolvidos
especificamente para destruir esses veículos. Só um míssil antitanque pode
tirar o Abrams de combate. Não há projétil leve ou médio capaz de perfurar ou
sequer danificar esse colosso de 70 toneladas. Isso mesmo ─ 70 toneladas, 25
a mais do que um Panther. E o bichão conta ainda com defesas contra ataques
nucleares, biológicos e químicos. As gloriosas batalhas entre veículos
blindados da Segunda Guerra provavelmente não teriam tido graça com os Abrams
no pedaço. Onze pés de largura por 26 de comprimento, o sonnabitch é uma
autêntica fortaleza, o mais formidável canhão móvel que já rodou suas enormes
lagartas por este planeta. Foi batizado em homenagem ao general Creighton
Abrams, ex-Army Chief of Staff e comandante do 37º batalhão blindado dos EUA.
Fabricado em três versões. O M1A1, a mais recente, é equipado com Thermal
Imaging, navegação GPS e comunicação digital.
Johnny delira. Não há páreo no mundo para o Abrams. Whew, 26 pés de
comprimento quando a torre do canhão está apontada avante, 50 toneladas
métricas. Para pôr esse titã em movimento é preciso uma força que seja tão
colossal quanto ele próprio. Para isso o Abrams é dotado dum propulsor de
1500 cavalos de força, turbinado a gás. Essa fantástica máquina confere ao
veículo potência para atingir até 70 km/h. Acelera de 0-32 km/h em parcos 7
segundos. E tem autonomia de 440 quilômetros. Fe-no-me-nal.
O armamento principal do mother-fucker é um canhão de 120 mm capaz de
disparar diferentes tipos de granadas, incluindo cápsulas penetrantes também
feitas de urânio empobrecido. Uau, Johnny quase não se contém de excitação. O
urânio empobrecido é 2,5 vezes mais denso que o aço ─ um dos materiais de
mais baixa penetrabilidade já desenvolvidos. O M1A1 é ainda equipado com
várias metralhadoras e lançadores de granada de fumaça. Pode superar
obstáculos de um metro de altura e cruzar valas de 3 metros de profundidade.
Para efetivar todo esse poder de destruição e botar pra quebrar, o Abrams
conta com uma tripulação de 4 membros: comandante, armador, carregador e
piloto, todos protegidos por roupas e máscaras próprias para suportar
substâncias radiativas, biológicas e químicas. Dos 1955 M1A1 usados em
combate na Guerra do Golfo, apenas 18 sofreram danos suficientemente sérios
para tirá-los de ação. E não houve sequer uma baixa entre todas as
tripulações.
A belezinha custa apenas 4 milhões de dólares, uma pechincha frente a
montanha de grana que os americanos torram com armamentos todos os anos.
Esses são os pensamentos que vagam pela mente de Johnny enquanto ele
assiste alheio ao noticiário da tevê através do monitorzinho do seu celular,
mastigando enfastiado um enorme biguemaque respingando rios de ketchup com
mostarda e engolindo roboticamente os 2 litros de coca com muito gelo.
Enquanto come quase sem vontade, Johnny tenta afastar dos pensamentos as
implicações que ingerir toda aquela carga calórica trarão para a sua nada
esbelta silhueta. Como a maioria de seus conterrâneos, Johnny é obeso feito
uma porca.
Assistindo às mesmas notícias ao vivo através de sua janela sem
moldura nem parapeito nem vidraça, Sadiq mal consegue abominar aquela gente
estranha que está invadindo seu país. Sadiq tem ódio aos invasores mais por
treinamento que, ó, forças das circunstâncias.
No meio da noite um Abrams apareceu do nada, magnânimo, ominoso,
rugindo a força avassaladora do demônio. Veio solerte e desdenhoso,
atropelando o casebre de Sadiq, dizimando o jogo de sofá e o sofá onde horas
antes Humam tinha contado a estranha história de Haythim e que fora herdado pela
mãe de Sadiq de sua mãe e as cadeiras na cozinha ganhas do primo Manaf e o
guarda-roupa que ele agora não lembra de onde veio. O monstro veio assim,
brincando, indiferente aos estalos da mesa sendo espatifada e dos ossos de
Sajida e Jasim e Bashar quebrando em dois, três, mil pedacinhos, veio se
exibindo como para um desfile, encarnação metálica da imponência, agora
avançando contra os casebres vizinhos, fazendo paçoca sunita de Zaid, Laith,
Feras, Mutaz, Jafar e outros amigos e/ou conhecidos de Sadiq sob sua
gigantesca carcaça de urânio empobrecido, fruto da mais elevada, da mais
fascinante tecnologia espacial, reduzindo, VRUMMMM, a refugo cada utensílio,
item, peça, ferramenta engendrada pela tosca civilização mulçumana e,
VRUMMMM, a escombros o grupelho de casebres quase flutuando perdido nas ondas
de areia do deserto e, VRUMMMM, a cadáveres desfigurados os moradores sob o
peso de suas lagartas gemendo com a lubrificação eternamente escassa no
inferno de 40 graus das proximidades de Badgá.
Quando avistou o conjunto de casebres mal enfileirados no meio do
vasto descampado desértico, Johnny não pôde resistir. Não tinha ordens para
destruir habitações nem atacar a população civil de qualquer maneira que
fosse. Mas as casinhas estavam tão convidativas ─ pareciam estar à espera
daquela ocasião especial, praticamente suplicando que o Abrams as violasse
qual um invencível estuprador cor da areia do deserto. Antes de acachapar os
casebres, Johnny ainda considerou a alternativa de arrasá-los com um
canhonaço à queima-roupa. Mas logo optou novamente pela ideia original de
simplesmente reduzi-los a pó sob as poderosas lagartas do tanque ─ seria um
massacre mais "humano", um toque de "intimidade" com suas
vítimas desconhecidas. O kick de brincar com o destino das pessoas como se
fossem bonecos não tem igual. Dá o maior barato.
Johnny calculou a trajetória. Enquadrou os casebres na mira do
veículo. Acelerou até 60 km/h. Dois segundos e o trabalho estava feito.
Johnny ficou meio desapontado. Não avistou ninguém, não escutou um grito, não
viu uma gota de sangue, nada. Olhou pelo retrovisor de plasma. Havia apenas
um vazio no lugar onde estavam os casebres. Da próxima vez vou usar o canhão,
lamentou, frustrado com a falta de feedback dos motherfuckers iraquianos.
Assim que o Abrams se afastou, Sadiq ouviu um choro de criança. Mesmo
no escuro da noite sem estrelas pôde identificar a silhueta dum menino a uns
15 metros dali, onde ficava a casinha de Salah. Era Basheer, o caçula do
vizinho. Basheer e Sadiq eram os únicos sobreviventes. Mortificado, Sadiq
aguardou quase paciente enquanto um pensamento homicida longínquo, quase
imperceptível, quase sonho, se insinuava por seu cérebro aconselhando-o a
pegar uma pedra, ir até Basheer e interromper o padecimento da criança. Como que
fazendo um exercício de imaginação, Sadiq olhou em torno. Pedra era o que não
faltava naquele areial desolado de restos e fragmentos em que se transformara
seu mundo. Um segundo depois o lamento de Basheer já não o incomodava. Era
apenas mais uma flor negra do demônio na dor da paisagem.
Sadiq não sabe que ficou obsoleto. Tornou-se tão imprestável hoje
quanto um daqueles indiozinhos kaiowás que se veem encaçapados num dos
interregnos que fatalmente se formam entre o mundo ocidental e sua ideologia
de progresso acima de tudo e avanço tecnológico a qualquer preço e conforto
absoluto obtido não importa como e felicidade garantida ou seu dinheiro de
volta e bem-estar permanente como se fora o estado natural do homem desde há
cinco mil anos de civilização, kaiowás mortalmente angustiados, sem saber
como voltar para as tradições de sua tribo dizimada pelo alcoolismo e o vazio
que restou de seu politeísmo caduco nem decidir se vale a pena vagar como
fantoches indigentes e dormir em bancos de praça onde podem fazer o papel de
judas fora de lugar incinerados por boizinhos enfastiados filhos de juízes e
funcionários públicos e morar sob viadutos numa cidade qualquer, se
enforcando no galho mais baixo duma das poucas árvores que ainda restam no
entorno mal chegam à puberdade, exterminadora inclemente de todos os sonhos
infantis.
Sadiq vale menos que um mico dourado. Micos dourados e araras azuis e
tigres em extinção ainda têm valor como animais exóticos, podem servir como
troféus em zoos, como pets bizarros em algum apartamento dum bando de
americanos ou europeus dispostos a gastar dez mil dólares numa mesa de
madeira de lei extraída inteiriça duma árvore amazônica de 200 anos, que
obviamente nasceu e existe para ornar a saleta smart do flat de johnnies e
bobbies e susans.
Quando finalmente Johnny cumprir sua missão e voltar para o seu quarto
arretado de paredes recobertas de cartazes de ídolos do rock e montes de
tralhas tecnológicas espalhados por todo lugar, mamãe Maggie vai comprar uma
jiboia da Amazônia para o pobre filhote assim que ele chegar todo
estressadinho da terra das Mil e Uma Noites e seus bárbaros aladins que vagam
tontos pelas areias do deserto sobre trilhões de barris de óleo enquanto oram
por Alá e maltratam suas mulheres.
Mas mamãe Maggie sabe que Johnny logo se cansará do novo pet. O
rapazola é tão inconstante. Ainda não se decidiu na vida. E em dois meses
será impossível manter no apartamento um monstrengo do tamanho duma jiboia.
Johnny certamente vai abandoná-lo num bosque periférico de Springfield.
Talvez alguém ache o bicho e o leve para casa. Talvez cães o trucidem.
Whatever.
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Qasim, Murtaza, Laith
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