Literalidades
Estou passando meio distraído quando escuto ─ ou
penso escutar ─ um choramingo.
Paro apreensivo. Olho em volta. Não vejo ninguém.
Dando de ombros, me volto novamente para a
direção em que seguia ─ ou penso que seguia. Meus sentidos vivem me
enganando. Até parece que têm um certo prazer em me pregar peças.
Retomo a caminhada. Mal completo o segundo passo,
outro choramingo. Agora mais agudo.
Dou meia-volta de supetão, tentando flagrar o
engraçadinho.
Ninguém. De uns tempos para cá meus delírios
parecem estar ficando incontroláveis. Tem horas que a confusão beira o
insuportável. A idéia de procurar um médico torna a me afligir. Será tão
sério assim? Quem devo procurar? Um psicólogo? Neurologista? Um calafrio me
percorre a espinha. Uma cartomante?
─ Aqui! ─ alguém chama.
Saio a custo da minha reflexão mórbida e viro
para o lado de onde a voz parece vir. Estreito os olhos. Ninguém. Olho em
outras direções. Nada.
─ Estou aqui! Veja!.
Desta vez consigo identificar a direção. Debaixo.
A voz vem debaixo. Será alguém caído? Ferido? À beira da morte?
Só há mato em volta ─ um mato ralo e rasteiro que
dificilmente poderia ocultar um corpo. Ou ─ o mesmo calafrio me sobe
novamente costas acima ─ um moribundo!
─ Aqui! Estou aqui. Olhe com atenção, que me
verá. Bem abaixo de você. Perto dos seus pés.
Tento me concentrar. Curvo o pescoço para baixo.
Aguço o olhar. Franzo a testa. Tudo que vejo é uma pedra. Está semi-encoberta
por uns tuchos de grama silvestre
─ Isso mesmo! ─ a voz diz. ─ Finalmente me
avistou.
Dobro os joelhos, me abaixo. Aproximo o rosto.
─ É você que está me chamando?
─ Hãhã ─ ela faz.
─ Qual é o problema? A solidão? As intempéries?
Precisa de alguém pra trocar umas idéias?
─ Olha, não lamento muito minha condição, não.
Posso suportar qualquer coisa. Menos a eternidade. Não quero existir para
sempre.
─ Talvez o planeta não resista tanto ─ digo em
voz meiga, apiedado de tão triste lamento. ─ Quem sabe quando houver a
primeira guerra nuclear...
─ Não acredito ─ a pedra tem a voz ligeiramente
esganiçada, como se procurasse conter um sentimento mais agudo. ─ E mesmo que
as bombas atômicas fizessem tudo soçobrar, mesmo assim o máximo que poderia
acontecer comigo seria me partir em milhares de pedacinhos. Isto, como deve
estar evidente, certamente seria muito pior.
─ É verdade! ─ caio em mim. Só de pensar tenho
outro calafrio. ─ E se eu te moesse, te convertesse em pó? ─ Começo a me
angustiar com a situação da pobre pedra.
─ Ai! ─ ela emite um ganido fremente de dor
moral. ─ E se cada um dos meus grãozinhos, por mais minúsculos que fossem,
padecesse desta mesma aflição? Seríamos milhões, quem sabe bilhões de novos
serzinhos condenados à eternidade!
─ Puxa, não tinha pensado nisso. ─ Engulo em
seco.
Apanho a pedra, escondo-a dentro do punho. Me
ponho de pé, olho as redondezas. A algumas dezenas de metros há uma lagoa de
águas turvas. Reúno todas minhas forças e arremesso. A pedra desenha um arco
contra o céu azul e, abrindo um buraco na superfície plana da água, mergulha.
Posso ouvir vagamente o “tibum” breve, efêmero. Uns pequenos jorros d'água se
erguem alguns centímetros e instantaneamente desaparecem. Talvez ali nas
funduras da lagoa ela encontre uma saída.
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Pequeno incidente de percurso
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