Passeando



Quase nunca tenho motivo para sair
Sendo precavido como sempre fui
Guardo tudo que preciso ao alcance das minhas mãos

Quem me vê de longe certamente pensa que sou um homem caseiro
Mesmo contra meus princípios
Mesmo contra minha vontade

Tem dia em que manter clausura é impossível, naturalmente
E hoje foi um dia desses em que tive de deixar meus domínios
Dizem que até Dalton Trevisan se vê forçado a abandonar sua citadela às vezes
Será verdade?
Sei lá. Não é coisa que me preocupe
Em outros tempos, sim, era, e muito
Vivia encafifando com Dalton
Com R. Fonseca, Jerome David Salinger
E com qualquer escritor tido por recluso
Eu mesmo fantasiava que um dia seria um deles
E a imprensa cismaria com os meus motivos

A escritor não cheguei
E dentre os reclusos não sou dos mais convictos
E mesmo que ninguém se pergunte por quê
(sequer os que me vêm de longe)
Pelo menos cumpri, digamos, um terço da fantasia
O que me deixa até meio orgulhoso
(Tudo bem, a aritmética... Vamos deixar assim suspenso.)

Quando tenho de sair
Como tive hoje
O incômodo é tanto, que em geral acabo fazendo um poema
Como este aqui

Certo, botando em palavras agora
Sei que daquela perturbação sobrou pouco mais que o conceito
E da poesia não restou quase nada

Mas, veja, tenho uma justificativa a apresentar
Que, embora não explique minha má poesia
Pelo menos mostra que sou um aspirante a vate responsável

É que tudo numa rua me assoberba
Tudo numa rua me seduz
São tantas coisas a me chamar a atenção
Que até me esqueço de vislumbrar o céu

De tudo que tenho que cuidar
Meu maior zelo é onde piso
E avançando assim cabisbaixo
Cabisbaixo como já não se fazem homens hoje em dia
Ensimesmado avanço sem dar conta do olhar

Será que devo apreciar a fachada desta casa
Só para estimar em que ano foi construída?
Ou é melhor analisar o jardim da frente
Para ver se os donos são minimamente asseados?

E assim vou andando enquanto penso
E se cruzo c'uma mulher perfumada
Então paro e fecho os olhos
Pois não quero me perder
E, diferentemente do brasileiro médio
Não troco olhares com os que vêm em contrário
Rezando para que também sintam nojo
De trocar olhares c'um desconhecido na rua

Já voltando, paro na esquina esperando a passagem dos carros
E decido, mais ou menos à minha própria revelia
Que, se deus ou qualquer outro ser superior a mim
Me der a graça de evitar que as minhas palavras sequem, virando refugo metafísico
Este será meu primeiro poema c'um gerúndio no título

Então, só para provar a deus ou qualquer outro ser superior a mim
Que estou falando sério
Chego ao portão de casa rezando assim:

São Gerúndio, padroeiro dos semipoetas praticamente pseudorreclusos
Defensor dos vespertinos inúteis
Fazei com que este meu passeio nesta tarde abafada de dezembro não tenha sido em vão 

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