Escuto

Quando você exala o definitivo suspiro antes de acordar

Se contorce de preguiça, mãos entrelaçadas e braços esticados à frente

Ainda sem abrir os olhos no escuro, cabeça vazia feito um cupuaçu seco,

Que se vai preenchendo de meios pensamentos à medida que te escuto

Escuto levantar da cama sob o ranger do colchão, farfalhar das cobertas,

E teu primeiro pigarro do dia.

Depois, de olhos entreabertos, auscultando algures dentro de ti,

Escuto enquanto você caminha teus passinhos até o banheiro e emite teu primeiro som distinto desta e de todas as manhãs da tua existência

Ouço o estalido metálico da fechadura da porta do banheiro, seguido do baque suave

Quase surdo, da porta que você encosta com o cuidado adquirido

Ao longo de todos esses anos de treino

Então escuto o exalar abafado dos teus gases que você todos os dias solta no ar

E que vão se juntar à estratosfera

E cujos odores neste dia serão o registro marcante da tua presença neste mundo

Escuto então quando teu intestino se alivia do resto do que você

Diligentemente ingeriu ontem para sobreviver

E permitir que eu continue escutando tua passagem matinal

Escuto quando você começa a urinar, um jorro vigoroso

Que aos poucos vai diminuindo e se torna uma sucessão de pingos cada vez mais Minguados, desagüando o copo de leite tomado ontem antes de deitar

Que inicia agora um regresso de consecutivas etapas pelo esgoto para o rio para a nuvem para a chuva

Então escuto a torneira do lavatório, a água escorrendo alguns

Segundos enquanto se estuda no espelho

E a seguir ouço quando escova animadamente os dentes

E sofregamente esfrega o rosto

E pacientemente assoa o nariz

E animadamente esfrega o rosto

E sofregamente assoa nariz.

E depois volta ao quarto

E escuto o roçar de tuas roupas enquanto você se veste

Puxando caprichosamente as calças pelas pernas

E te imagino na penumbra, tateando esmeradamente o peito


Em busca de cada botão, de cada casa de botão

Te escuto caminhar à cozinha e me preparo para o longo rito do teu metódico desdejum de ritmo andante, ciciando a tampa da lata de chocolate que desenrosca

E faz respousar na toalha da mesa cuidadosamente, sem um ruído mas que adivinho,

E logo vem o movimento allegro dos ressonantes estampidos quando destampa a margarina, depois o vidro de café instantâneo, o açucareiro

E a porta da geladeira e a colher mexendo o leite e teus sorvos na xícara

Então vai para a sala, abre a porta da rua e a fecha zelosamente às suas costas

Para não me acordar

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