A tentação parece irresistível, eu sei. I've been there. Você tem esse sentimento de posse da dor, com escritura passada em cartório, e tudo está resolvido. Optou pela tristeza. Despreza os alegres. Alegria é atestado de bem-estar, bem-estar é prova de alienação. Não podemos esquecer nem por um minuto que somos seres vocacionados para o padecimento. Você não reivindica o direito à felicidade. Nutre, mais que um espírito, uma alma. Os equipados com alma não se podem dar tais luxos. Os felizes caminham -- você dá passos. Mas não são os passos cautelosos, estudados ao alcance de qualquer um. Seus passos são premeditadamente hesitantes. Deliberadamente irresolutos. Incertos de sua direção.  Trôpegos. Parecem buscar um tropeção. Só os tolos pisam firme. E quando seus pés tropicam, que a queda seja súbita, atordoante, perturbadora. Nada como um bom tombo para restaurar a sensação de estranhamento. E o mundo visto de baixo pode render inéditas perspectivas. Enxergar os adultos lá em cima como se fora um inseto rastejante, a musa preferida de Manoel de Barros. Esses adultos mesquinhos, robotizados, venais, previsíveis. Que graça tem saber o que acontecerá ano que vem, amanhã, daqui a um minuto? Você quer é levar a vida aos sobressaltos. A mesmice é o mal a combater. Está se viciando em surpresas. Quer virar um espantado profissional. Só o inusitado tem importância. Recebeu um mundo de segunda mão, um mundo a girar em rodopios que não nos deixam tontos, a despertar sonhos sem graça, a inspirar versos batidos. Crê que sentir-se deslocado é suficiente. Lança nas coisas esse seu olhar doente de perplexidade e se compraz. Quer-se atônito, desconcertado ante o milagre, a sentença, a impossibilidade de viver. Por isso, ao invés de viver, procura. Busca. Vasculha. Pergunta. Mas pergunta só a você mesmo -- está convicto de que os outros não têm a resposta. Acredita em mistérios como os religiosos acreditam em deus e os místicos em numerologia. Seu mundo está recoberto de véus, véus indefectivelmente diáfanos em cores pasteis, véus que caem e recaem sobre véus que encobrem apenas em parte as formas originais das coisas para que você nunca esqueça que as formas originais das coisas não lhe apetecem. O mundo como ele é não lhe interessa. Objetividade, eis a maior doença dos homens. O soterramento do pessoal em nome da sobrevivência física. O utilitarismo que devora as idiossincrasias, nos automatizando a todos. A ditadura das horas, dos costumes, das agendas, da língua. Você nasceu para indispor-se. Confrontar. Comprar briga. Fazer inimigos. Quebrar o espelho. Arrancar a máscara das máscaras.

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