Nada além do mundo, ninguém além de mim

Resolvi partir. De repente. De repente como sempre faço. Desconcerto, sei. Me perco na longa noite escura. Quem me vê talvez tome por fricote, confunda com charme. Até uns tempos atrás podia ser. Mas sabe o que é engraçado nisso? O engraçado é que o charme que eu fazia era para mim mesmo. Isso de certo ninguém vai entender. Não parece razoável. Charme e outras coisas só se faz para os outros. Acho que faz parte da nossa ritualística. Nossa, não -- deles. Nesta Fração de Segundo Internacional da minha ex-mulher Sílvia quero a mãe que ocupe a cozinha. Hoje, me pondo no lugar dela, tento me enxergar desempenhando meu próprio papel. E não me enxergo atuando para uma plateia. Tantas perguntas, não é? Às vezes ouço um murmúrio vindo lá debaixo onde ficam as cadeiras. Mas não há nada lá quando olho. Estou absolutamente sozinho. E para quem você vai atuar quando está sozinho? Para você mesmo. Parece complicado. Mas não é. Você atua -- uma cena, duas, talvez a peça inteira --, corre para a primeira fila, senta e aplaude. Mas no meu caso nunca me aplaudo. Isso deve estar óbvio para quem me vê. No curto dia claro me perco. Há horas em que me vaio. Mas na maior parte das vezes me limito a silenciar -- fico lá imóvel estátua, semblante severo, olhar perspicaz de crítico magnânimo assistindo ao meu vulto no centro do palco, por minha vez desempenhando meu papel de espectador a outro de mim que está sentado na segunda fila. E na terceira. E na quarta. E o gás exaure requentando o arroz-feijão eterno descongelando as memórias do freezer refogando doces dores no fogão. Complicado, sei. E é. Não foi à toa que ela cansou. E há algo extremamente errado nesta minha conversa de autoteatro -- vou falando, assim como quem não quer nada, como se todos nós seres da espécie humana fôssemos aferroados pelo dilema da autoencenação. Até podemos. Mas não é condição própria da raça que angustie muita gente. A maioria está preocupada apenas em ser feliz. O que -- hoje admito -- não é pouca coisa. Na sala Sílvia era a amiga que a mim se irmanava, carimbando burocrática as atribuições cotidianas, treinando meus dedos nos desenhos do meu alfabeto para escrever à mulher que preciso encontrar. Posso parecer meio idiota -- ou leviano -- fazendo pouco assim da felicidade. Não faço, acredite. Hoje não. Até ontem, naturalmente. Vou ficando cada dia mais e mais sem respostas. Além de assistir à minha própria encenação, me amarrava em ficar de fora do grande drama humano, tirando uma da cara dos pequenos homens e mulheres e suas pequenas tragédias pessoais e suas efêmeras alegrias de quem se contenta com quase nada e sua cega obediência religiosa aos mitos em que foram ensinados a acreditar e suas patéticas crenças em tudo aquilo que desconhecem e sua previsível e tirânica devoção ao bem-estar e sua esterilizada necessidade de senso estético.

Quando penso me perco, quando me perco me perco, me perco quando me lembro, me perco quando me esqueço. Ela me perdia na minha cama,  porca sem pudor de se emporcalhar, soprando em meus ouvidos revigorantes imundices, me torturando às lambidas até a rendição, me purificando de sua sujeira, me rebatismando com o nome que não sei e sempre esperei ter.

Ela não me entende. Já imaginou uma vida sem perguntas? Como esta ou qualquer outra? Vida assim valeria a pena viver, não valeria? Mas eu a entendo. Naquele instante, não. Agora, sim. Pois agora consegui enfim descansar. Depois de meses. Estou relaxado. Parece até o prenúncio de uma dor maior.

Me perco quando me olhas com teu olhar macio enquanto me tocas com tuas mãos frias.

Há tanto tempo não me sentia assim aliviado. Às vezes parece que tenho esperança. Mas não vou falar da minha desesperança. Hoje não. Hoje vou deixar minha desesperança lá fora da porta na chuva com o meu pessimismo, sob a tempestade com meu romantismo exacerbado, nas trevas com meu culto ao mórbido, na minha loucura fingida, nas minhas, sei lá, neuroses.

Com Sìlvia eu era capaz de achar os caminhos dentro de casa sem me perder.

Então, pela enésima vez, montei Meu Grande Palco das Dores Pífias. E subi à ribalta e estufei o peito e enchi a boca e em tropicantes versos declamei meu drama enquanto a Sílvia teria bastado um pedreiro, encanador, jardineiro, pintor, serralheiro, azulejista, carpinteiro ou eletricista.

Quando ela se foi descortinei o brutal panorama da dor. Todas as outras, a.S e d.S., foram, vejo agora, apenas treino. Sou simplesmente um neurótico, não tenho o direito de me fazer passar por artista. Ou "sensível", se "artista" soar pesado demais. Esse foi meu maior erro. Querer passar por artista almejando às regalias próprias daqueles que fazem arte. Em minha defesa, diria que estava apenas tentando obter um salvo-conduto. Diria. Mas não vou dizer. Não quero me defender. Entre outras razões, porque sou indefensável. Meus crimes são tão medonhos, que sequer constam dos códigos legais. Ah, lá ia eu de novo me fazendo de especial. Não, não cometi crime medonho algum. Minha única falta, que tampouco parece grave, é ser mentiroso. Sou um reles mentiroso, desses que há aos milhares em qualquer esquina do centro, aos milhões em qualquer grande cidade, aos bilhões que neste exato momento estão em seus cubículos mundo afora diante de seus computadores encenando covardes e solitários suas fantasias neuróticas por ser incapazes de tomar ações práticas. E por ser parte desse rebanho -- o que me doi admitir -- jamais cheguei tão perto assim duma verdadeira confidência, pois todas as fraquezas que jamais admiti em mim mesmo admiti apenas para me fazer forte -- por ser parte desse rebanho, não mereço foro privilegiado.

Me perco quando passo diante de sua casa, esperando ouvir sua voz me chamar.

Escrevendo assim para ninguém, sei que ela está me lendo, mesmo assim não consigo ser mais direto do que estou sendo. Depois de tudo que fiz, acabaram-se meus recursos. Ela cansou das minhas idas e vindas. Queria lhe dizer que não sei ser de outro jeito. Porque subo caindo, volto indo, choro rindo. Sou tudo ao mesmo tempo, quero tudo ao mesmo tempo, faço tudo ao mesmo tempo. As coisas acontecem rápido demais aqui dentro. Não sou fácil. Nem me esforço muito para ser. Bem, depois de tudo, até que estou me. Você provavelmente está percebendo. Não está? Estou fazendo tudo que posso. É pouco, sei. Na prática praticamente nada. Não é desculpa para mais um jogo com as palavras. As palavras são meu cárcere e minha treva e a lamparina bruxuleante que vez ou outra sou capaz de acender no breu da minha noite.

Então resolvi partir. Que dia foi? Um, desses. Antes de ontem? Boto um pé fora da porta, bato, tranco, pela janela ela me vê indo. Rio por dentro, fico imaginando o que ela estará pensando, quero adivinhar o que estará sentindo. Pois, você sabe, ela é um enigma. Reservada qual interior escuro de boate para os meus olhos de criança. Sou ao contrário. Você também sabe, me expus por inteiro ao longo desse tempo que parecia não ter fim. Provavelmente não deixei nada de fora dos relatórios sentimentais que fiz a ela. Como se me martirizasse num pau-de-arara, lhe confessei cada um dos meus sonhos e cada uma das minhas vergonhas. Imprudente, supliquei que concretizasse comigo minhas loucuras.

Vou sabendo seu nome completo, profissão, um ou outro da família, suas enxaquecas e tpms, a idade, a naturalidade, que fez três abortos, que, descendente confessa dos peixes, tem uma afinidade quase atávica com a água, que olha a vida com a crença simples de que a uma ação sempre cabe uma reação, que ria das minhas esquisitices c'uma risada franca e cristalina que me acabrunhava, que é sincera (não, mais que sincera: honesta. Duma honestidade que me perturbava, de tão aguda), que é precavida.

De mim, repito, sabe tudo. Menos minhas virtudes, pois essas não as tenho. Mas, você há de reconhecer, nunca escondi meus defeitos. Será esta então uma virtude? (Não, não quero ter virtudes. Preciso preservar esta minha fama de famigerado.) E claro nunca escondi meus defeitos porque são inescondíveis. Então acho que não sou tão bobo quanto pretendo parecer. Ao longo da minha vida, me decidi a iluminar meus defeitos por não ter como ocultá-los. Terá tudo se resumido a um estratagema? Inexistente deus, fazei que não. Não posso estar encalacrado a esse ponto. Estou farto dos meus truques. Por isso, entre outras razões, resolvi partir. Estou no meio do caminho, acho. É tudo tão estranho. Penso estar numa cidade-fantasma. Vou indo como no poema espanhol, o caminho se faz à medida que avanço.

De tudo que não sei, só uma coisa é certa -- espero sabendo que minhas chances acabaram. Talvez nem ao menos isso saiba. Por certo não quero. Em breve me cansarei mortalmente de ir voltando. Já se foi um ano inteiro? Para mim, absolutamente nada. Estou a esperar desde que nasci. E o dia em que a espera já não fizer mais sentido será o dia em que morrerei.

Em vista do acima exposto, envio um poema para Sílvia.

Um ano é uma eternidade

Naquelas tardes ainda era possível amar sem temer que já não havia esperança
E as perdi, aquelas tardes, como quem perde a chave de casa
Me lembro que avançava seguro de mim
Indiferente à minha ingenuidade
Os que pensam saber são tão arrogantes!
Não havia saída então ou não haverá hoje?

Clico enviar. Me planto diante do computador, cruzo os braços, espero. Um email de resposta é um motivo razoável para esperar, não é?

YOU'VE GOT MAIL! YOU'VE GOT MAIL!

Como vai? Olha, tem dia sinto saudades daquelas loucuras... Bj.

Assim, com reticências. O mais sórdido, o mais desumano, o mais ambíguo sinal de pontuação. E a preguiça dos nativos da internet de mandar um beijo por extenso.

Treplico:

Pseudopoeta mudando, acima do peso, poltrão, desleixado, doentio, instável, desempregado, molenga, sociopata (claro), pai de nº incerto de filhos, avesso a qualquer atividade física, repentinamente disposto a chutar o pau da própria barraca, oferece-se para trabalho por empreitada, biscate ou diária. Faço serviços de solda, instalação de luminárias e refletores, sensor de presenças, calhas florescentes, limpeza de caixa d’água, terreno, troco chuveiros, todos os serviços elétricos, troca da fiação geral, disjuntores, chuveiros, tomadas, interruptores, campainha, instalo quadros e cortinas, conserto ventiladores de teto, instalo ar condicionado, executo manutenção de cerca elétrica e portão eletrônico, conserto portas, janelas, armários de cozinha e móveis em geral, trabalho com todas as marcas de pinturas em geral (paredes, pisos e azulejos), faço pequenos carretos, aceito como parte de pagamento algo que você tenha (pode ser ferramentas, máquinas, vitrines, qualquer coisa que me interesse), financio em até 10 vezes no cartão, aceito serviços para fazer em casa, onde eu possa repassar, aceito doação de aparelhos pifados como TV, som, vídeo, livros, portão, bomba de poço, alto-falante, retiro no local, aceito serviços de entrega e vendas, posso trabalhar buscando e levando idosos e doentes, enfim estou pronto para qualquer tipo de serviço dentro da lei e ao terminar posso imitar o Gianni Morandi:

Se non avessi più te meglio morire perché questo silenzio che nasce intorno a me se manchi tu, mi fai sentire solo come un fiume che va verso la fine.

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