Enquanto pauso e suspiro

Soninha ronca feito marreca pulando na frigideira.

Não ligo muito. Não acordei ainda. E o meu radinho de pilha, que nunca silencia, está tocando um concerto de Haendel. Ouvir um sujeito como Haendel sonâmbulo é insuperável. Distingo claramente os violinos dos trompetes, as xifópagas fugas se imbricando, os acordes robustos e palpáveis, as frases vivas se enroscando e desenroscando qual minhocas na lata de óleo de milho que papai levava em suas pescarias com mamãe e a empregada.

Os violoncelos se enfurecem, umas vaguesas sobrevoam aos tropicões em meu cérebro pedindo que as registre no meu blog. Faço que sim. Mas é só uma promessa. Meus resíduos oníricos nunca se mantêm os mesmos. Às vezes viram pó e somem pela lixeira da alma, outras se aglomeram tomando um corpo demasiado grande para a minha consciência.

Toda manhã levo uma hora entre semiacordar e me semierguer na cama e me semilevantar e semivestir as calças e semienfiar os pés nos chinelos e semidescer para o escritório semissonâmbulo com fragmentos de ideias e palavras e frases primitivas e nomes de blogs semipipocando dentro da cabeça. Mais ou menos uma vez por mês, à noitinha, quando já cliquei à tripa-forra, me animo a assuntar num blog alheio. Raros são legíveis. Começam mal já no nome. Um deles chega ao cúmulo de trombetear-se "sonâmbulas sonecas", numa grotesca tentativa de fazer poesia com esse escorregadio estado mental comum a todos nós enquanto raia porcamente o trocadilhesco.

Rezam os críticos que trocadilhos são indesejáveis. Eu também.

A maioria inclui no título do blog cafonices como delírio, palavra isso e aquilo, letra aquilo e isso, glamur, profundo sei-lá-o-quê e por aí afora. Alguns almejam a fazer graça. Outros cometem a imprudência de se autointitularem "poéticos". Os autores desses blogs obviamente nunca leram Eliot e suas sentenças de morte à poesia excessivamente poética que não raro se afoga desamparada no brega. Tendo o parnasianismo deteriorado há pelo menos 150 anos, muitos "poetas" ainda confundem poesia com retórica. Palavras bombásticas, obsoletas, extravagantes ou meramente sentimentalóides podem até produzir algum efeito elegante ou efemeramente intrigante, mas de certo não são as mais apropriadas para expressar os nossos sentimentos. Acabam apenas traindo pretensão. But who cares? Blogs não passam de fetiche tecnológico e pouco têm a ver com poesia. Os verdadeiros poetas estão lá fora tentando viver apesar da vida. E, mais importante, ninguém lê blog literário. Escrevemos torcendo que uma alma caridosa nos leia, mas somos nossos únicos leitores. De minha parte escrevo unicamente por vício. Ao longo de quatro décadas devo ter escrito o equivalente a meia Recherche e sei que vai tudo embora comigo. Dizem que não levamos nada desta vida. Alguns levamos sim.

Mas antes que eu consiga dar um passo para fora do quarto Soninha geme e acorda e me vê na penumbra e sorri. Essa mania de sorrir antes de qualquer outra coisa me irrita ao delírio. Não entendo essas demonstrações mecânicas.

Você comprou as passagens para Buenos Aires?

Pronto, os semifragmentos de semiideias para o blog foram pro saco.

Digo que não tive tempo, vou comprar quando puder. Nunca, naturalmente. Se Borges não aturava os argentinos, por que eu haveria de?

E se fôssemos para o interior em vez da capital?

No interior eles têm tango? Se a gente não for, você me paga um curso de tango?

Se tiver curso de tango nesta cidade, pago.

Ela tira uma perna da cama e para, pensativa. Alguns segundos depois tira a segunda e para de novo. (Detesto esse para sem acento. Por que os acadêmicos e políticos têm de mexer na língua dos outros?)

Já vou indo. Tenho um cliente às onze. Minto, claro. Não tenho cliente nenhum há uns oito anos. Até.

Nenhuma beijoca?

Por que mulher gosta tanto de beijar? Deve ser papo de mãe. Sílvia, apesar da dureza e do feminismo, também gosta. Um beijinho frio e seco como o clima de Frankfurt. Sílvia agora só tem amantes, diz que não vai mais namorar ou casar. E só homens casados. Deve ser necessidade de aventura. Adora debochar dos ex-maridos fiéis que lhe caem nas garras chucros. Tem de lhes ensinar até o básico. Não sabem sentir prazer. Uns se recusam ao sexo anal. Sempre me pergunto por que comigo ela nunca quis sexo anal. Soninha curtia pacas, mais que eu. Sílvia agora arrumou um amante negro. Perguntei se estava satisfeita com o tamanho. Pode parecer boçal, eu sei. (Já me chamaram de escatológico. A classe média e suas fantasias de assepsia.) É mentira quando mulher diz que tamanho não é documento. Do meu ela se queixava.

Faço cara de arrependimento, vou até a cama e lhe aplico um selinho. Ela sorri como se ganhasse na loteria.

Dá pra você botar essa carta na caixa do correio? Ela aponta em cima da cômoda.

Tudo bem. Pego a carta, dobro e enfio no bolso sem ler ou perguntar para quem é. Saio prometendo a mim mesmo que vou arrumar o curso de tango nem que seja em São Paulo. O Serra fez uma estação do Metrô relativamente perto. Serra é do bem.

Só mais uma coisa. Você prefere esta blusa verde ou a amarela?

Meu ímpeto é dar de ombros. Não entendo essa preocupação das mulheres com o que vestem. Nunca, uma vez que fosse, pensei em escolher uma camisa pela cor.

Amarela.

Novo sorriso.

Hoje vou ver se pego aquela vaga.

Ah, boa sorte.

Soninha viu uma placa no comitê da Dilma contratando moças. Entrou para perguntar, disseram que era para proselitismo. Duvido que um petista de bairro saiba o que é proselitismo. Chegou aqui, perguntou que raio era aquilo. Expliquei. Ela se animou. Soninha adora a Dilma. Esquerdistas têm uma visão profundamente pueril do mundo. Pediu para eu mostrar como se faz. Tentei. Não sou bom de fala e mímica. Minha voz anuncia de longe o meu enfado permanente (uma vez tentei dar aulas de inglês, mesmos os alunos mais esforçados caíam no sono em dez minutos), minha linguagem corporal deve parecer missa em latim. Mas Soninha é esperta e pegou no ato. Cinco minutos depois seguramente tinha esquecido o significado de proselitismo. Mas já era uma proselitista nata.

Então até, repito.

Bom trabalho.

Saio pela porta dos fundos e desço, chutando hibiscos fenecidos caídos no caminho de pedra mineira. Piso nestas pedras desde que nasci e cada vez que piso me pergunto de que profundezas de Minas terão vindo. Tenho tando dó do mundo.

Olho para a janela do quarto, está apagada. Soninha voltou a pegar no sono. Quanto entusiasmo para dormir tem essa menina. Se não tivéssemos 35 anos de diferença, dava uns tapas no Lacerda, fugia com ela, comprava um vestido de noiva e me casava na igreja, o maior desejo dela. Outra coisa que não entendo nos pobres, mas já me acostumei. Antes de conhecer Soninha eu vivia rindo de certos conceitos e de certas palavras useiras na mídia. "Fenômeno", por exemplo. É uma das mais repetidas entre "cientistas políticos" debatendo as eleições na imprensa. De minha parte, nunca presenciei um fenômeno, nem de longe. Certo poetas, como Ferreira Gullar, por exemplo, vivem exaltando a importância do absurdo em suas "obras". Para mim o absurdo não existe. Quando olho para fora e penso em mim, tudo me parece natural. Inclusive a loucura. Fenômenos são igualmente raríssimos na nossa vidinha besta. Na minha, exceto minha eufórica, amada Soninha.

Meto a chave na fechadura, preciso trancar sempre que saio, morro de medo que levem meu computador com a minha metade da Recherche e de que só faço backup uma vez por ano por preguiça.

Ah, minha preguiça. Poderia ficar dias escrevendo sobre ela não fosse ela própria. Essa sim é um "fenômeno". Custo tanto a pegar embalo. E escrever é tão excruciante. Me lembro do Rubem Fonseca toda vez que penso no assunto. Fonseca diz (ou dizia quando escrevia regularmente, não sei se ainda escreve) que escrever (certo, essa repetição irrita mas me acostumei de tanto ler Bernhard e não consigo adotar o costume lusitano de usar aqueles pronomes espantosamente oblíquos, embora tenha escrito em lusitano muito anos antes de (me) cansar) é questão de, mais que talento, muque. Todo mundo sabe que ele praticava halteres, não sei se apenas para escrever ou também pensando na saúde e longevidade. Taí outra coisa que não entendo: escritor halterofilista que preste. Meu ideal de poeta é Roberto Piva ("Eu só acredito em poeta experimental que tenha vida experimental, que não tenha medo de beber, tomar alucinógeno, amar."), apesar da pecha cafona de "maldito". Todo "bom" poeta é maldito em algum sentido. Mesmo os que na vida fazem(izeram) parte do mainstream. Meu ideal de poeta é Ana Cristina, Sylvia, Anne S. Ah, quanta coragem é preciso ter para renunciar à paz, ao sossego, à simplicidade, às fantasias "burguesas" pela poesia. Quem dera eu a tivesse. Mas não ia querer o cerebralismo estéril dum Haroldo ou a erudição dum Mário Faustino. Minha poesia, se fosse ungido, seria tão bruta e rudimentar, que qualquer idiota fosse capaz de entendê-la. Se poeta fosse, eu falaria do prazer de falar besteira a torto e direito. Exaltaria a sacralidade duma cambalhota na grama. Enumeraria as virtudes da falta de vocação para os afazeres utilitários ou para qualquer outra coisa, incluindo a poesia. Descreveria a sensação de lembrar quando mamãe me vestia com a roupa da missa me dando um beijinho de prêmio. Versejaria sobre a insuperável experiência de parar na esquina para ficar olhando o mundo passar à minha frente.

Mas me tornei este burguês de que cresci lendo Sartre debochar de. Acho que tenho límpidos na memória os vários momentos em que desisti da opção pela minha poesia bruta e brutal para me tornar um pusilânime esbanjando saúde a verter uma poesia enfermiça. A marginalidade mental não admite receitas de prozac. Meu ideal de poeta é Stela do Patrocínio. A marginalidade emocional não admite clemência por compaixão. Meu ideal de poeta é Orides Fontela.

Nós burgueses impenitentes não sabemos avançar para além do amante seguro, próprio para manejar e esconder. Ocasionalmente um ou outra comete uma gafe. Pode então ver seu casamento desmanchado, perdendo até mesmo metade dos malditos bens. Tudo depende da boa-vontade do cônjuge corneado. Ou da capacidade do cônjuge corneador em levantar os podres daquele para fazer uma barganha. Você larga o teu, eu largo o meu e voltamos a dormir na mesma cama como se nada tivesse acontecido em nome das crianças e do Peugeot novinho em folha. Os mais radicais ousam sonhar com a vida que não tiveram enquanto assistem um dramalhão hollywoodiano. Então enchem os olhos d'água e confessam para si mesmos que, sim, certos sentimentos, embora genuínos, são e serão ocultados em nome dos negócios.

Estou falando, em grande parte, de Sílvia, claro. Não mercadejei assim tão descaradamente meu "coração". Apenas me vendi mais caro. E, vendo o estado a que cheguei, e a que chegaria de qualquer outra forma, tomei na cabeça. Não é exagero explicar que mamãe ficaria de cara amarrada se me visse agora. Que bom que já se foi. Não suportava vê-la sofrer.

Mas burgueses renitentes não são a única raça que povoa este sombrio corpo celeste. Há os aspirantes a. Há os felizes. Pior: os ditosos. Há, ó minha amada pequenina Sônia, os eufóricos.

Soninha é um frasco vazio. Seu possível conteúdo depende de mim. É a primeira vez na minha vida que escrevo conteúdo sem aspas. Certas palavras são impronunciáveis.

Minha pequena cara, é teu este mundo. Quantos, quais de nós não nasceram para sobreviver? Você de certo é uma das eleitas. Vejo teu olhar deslizar pelas coisas que te rodeiam e vejo que estás em teu habitat, teu território. És a gaivota contra o céu da praia, a foca no mar da Patagônia, a boa bactéria na flora genital. Não deixa que sequer uma gota de mim te ocupe. Pois uma gotícula de mim poderá te envenenar. Estragar teu sorriso singelo. Empestar o puro ar que teu narizinho aspira. Perverter teus abençoados hormônios. Te expor à verdade do mundo.

[será que continuo amanhã? terei terminado? ou não era nada disso?]

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