Confissão dum torturado

Fiquei largado lá minha mesa, cigarro entre os dedos, copo intocado à frente, olhando o nada. Tinha ciência dos vultos circulando ao redor longínquos como personagens dum desenho animado, emitindo fonemas numa língua sem sentido. Não havia nenhum pensamento na minha cabeça. Pressa no meu coração. Propósito na minha existência.

Não precisava existir. Não precisava morrer.

Mesmo sem pensar, sabia que aquele rosto em meu rosto não era meu. Como não era minha aquela minha camisa azul xadrez. E não eram meus aqueles meus olhos olhando o nada. E não era mais minha a minha mesa onde fiquei largado por um segundo feito de séculos até ver minha espera finalmente abolida.

E, mesmo sem haver fim, a espera terminou.

Então abstive-me de aspirar a um sorriso, à compreensão, ao gole seguinte, a uma trepada.

E abstive-me, abstive-me, abstive-me.

Até me inundar do passado.

Nenhum comentário:

Postar um comentário