Interrupção quase acidental


Fiquei hesitando em responder, pesando as conveniências, deixando os pensamentos correrem soltos se perdendo se absorvendo em outros sumindo, me parecendo bobos e inúteis enquanto tentava salvar os menos insatisfatórios como quem escolhe maçãs podres num cesto obsoleto que me recuso a jogar fora por inércia e preguiça e medo de perder a substância de que se constitui minha cabeça.

Bati o olho no teu email e hesitei entre a alegria e a apreensão, desconfiei da gravidade do teu assunto, me interroguei, que é que ele (pois que há uma infinidade de tempo sou obrigado a te sentir outro) tem a me dizer, há séculos desistimos de nos dizer coisas, ao longo desses anos fui me decepcionando -- primeiro uma decepção meio milimétrica, desconcertada, procurando me agarrar nos sinais esvanecentes da tua infância que ia acabando à minha revelia, me traindo, me deixando em meu abandono enquanto o tempo te roubava para uma dimensão que, a cada dia eu via meio aterrorizado, era vedada primeiro à minha entrada, depois ao alcance das minhas palavras e à curiosidade dos meus olhos. Fui assistindo a contragosto os passos que você arriscava fora dos limites que tracei para o nosso domínio, até que dum supetão vislumbrei tua existência autônoma e a minha incontornável obsoslescência num crescimento ao contrário.  Parece que os dois finalmente chegamos ao que todos chegam cedo ou tarde – só me resta me conformar com as verdades e convicções que couberam ao outro e renunciar à esperança de que o outro me compreenda e aceite.
Fui lendo de respiração presa, temendo O troco. O troco é o terror de todo pai não cafajeste, do pai que, disposto a criar um filho, se mete no fogo sabendo instintivamente que a partir daí irá se queimar aos poucos à extinção. O pai que se ausenta da criação dum filho se ausenta da criação dum filho por medo d’O troco. A revanche dum filho é definitiva, não comporta revisões, não faz parte das encenações românticas fajutas que gostamos de representar porque gostamos de fazer de conta que somos protagonistas fajutos em nosso palco fajuto e porque, feito um felino que brinca com a presa entre suas garras até matá-la, gostamos de brincar com o conceito da segunda chance. Aquele dia tua mãe voltou do médico dizendo que estava grávida esperando, na mais decepcionantemente hollywoodiana das cenas, ver brotar em meu rosto alegria para ver apenas estupor, esse estupor amargo com que a brindei na maioria das vezes em que nessas décadas de fardo um sorriso singelo bastaria e conviria, caí em estupor porque percebi com a mais aguda das clarezas, entre todas as outras coisas que percebi com dolorosa clareza e que até hoje vou tentando classificar na minha taxonomia íntima, que a partir dali não teria mais o refresco da segunda chance. E naquele vislumbre de fulgor quase cegante vi também que, mesmo sem a misericórdia da segunda chance, continuaria cometendo os mesmos erros que nasci e morrerei cometendo e que, manjadíssimos que são hoje para a minha capacidade escassa de discernimento, não tenho a mais ínfima ideia de como evitar. 
Fui lendo atento mais a possíveis sinais de perigo aqui dentro de mim do que aos significados do teu texto. Até este momento li apenas uma vez e provavelmente passei batido na maior parte do que li. Sobrevoei aéreo tuas palavras, temeroso de pousar, refratário, resistindo aos significados que em outras circunstâncias e para outros remetentes e destinatários seriam simples de pescar, esperando atrás de cada vírgula a cilada que, sei, me espreita atrás de cada coisa. Ainda vou retornar ao texto – ou será que me falta coragem de aceitá-lo a carta que de fato é? Texto é tão mais genérico, neutro e descompromissado, estamos rodeados e enterrados sob textos de todos os tipos, matizes, ideologias e línguas, textos com que nos engalfinhamos para vencer e assimilar esperando que aprofundem nossa inteligência turva e resolvam nossos sentimentos confusos e pavimentem em blocos sólidos o caminho precário à frente, textos com que lutamos a mais encarnecida das lutas como se dependesse deles nossa sobrevivência porque não queremos e não podemos ler o texto primordial que temos dentro de nós porque não queremos e não podemos articular as palavras que soam penosas como se fossem apócrifas.

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