Vazamento



Com o mais revelador pensamento na ponta da língua
Que enfim expressava
Toda minha revolta
E raiva
E o gosto amargo que me sobe do estômago
Sempre morrendo na garganta
Acordei, alta madrugada
Suado e triunfal
Estava ali, tão acessível
Bastava pegar a caneta e registrar no papel
O pensamento na forma que, sei lá, desde meus oito anos
Traço e refaço, faço e desfaço, ponho e tiro
Odeio e afago
A forma que desde que nasci
Vou escarafunchando com dores pontiagudas na alma
E tateando cego névoa adentro
Alma afora
Estava ali agora
Tão simples
Como não pensara nisso antes?
Que fácil! veio assim no meio do sono
Num bem-acabado bloco
De palavras justas
De versos tesos
De conceitos sólidos
De horizontes limpos
Agora ela veria
Todos veriam
Que por dentro este mané
Sempre meio trôpego
De gestos inseguros
Fala enrolada e taciturno
Abriga um fero vingador de si mesmo
Porta-voz definitivo dos que ocultam outros dentro de outros
Então, peguei a caneta e o papel que sempre deixo no criado-mudo
E na penumbra do quarto pus-me a garatujar na minha letra aflita
Rápido! pensei, rápido antes que desapareça a tão rarefeita esporádica inspiração
E me deixe mais uma vez fuçando a palavra fugidia
Rápido! pensei, antes que venha o tédio
Antes que eu desperte de novo para o mundo vazio

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