O dia não amanhece.
Há luz. Mas o dia não amanhece.
Pássaros não cantam. Os galhos das árvores não tendem a
envergar.
Ninguém diz, nem quer
dizer: “Sou livre”. “Minha alma é leve”. “Que se há se fazer?”
Cortes não cicatrizam. Gêmeos não se parecem.
O açúcar não adoça, a guerra não saneia.
Os lápis param de riscar. Os postes desistem de sustentar os
fios elétricos. Nos pântanos, os caranguejos não querem mais tomar sol.
(Ao qual nunca se deve olhar diretamente. Menos neste dia.)
E não é um dia de agosto, em que sempre há uma saída – embora
a saída nunca seja outra.
E não é um dia de inverno, nem de verão, nem de nada. Pois é
um dia que não amanhece. E dias que não amanhacem não têm classificação.
Neste dia, as salas de espera estão vazias. As fábricas
continuam imponentes (e muito, muito mais altas que os habitantes da cidade),
mas já não devoram operários pelas bocas escancaradas de devorar operários.
Nada depende das circunstâncias. Alguns até queriam mexer os
pés, apalpar a nuca para ver se ainda está tensa. Mas pensam bem e decidem que
não querem.
Nas feiras-livres não há comadres para comprar os pepinos e
os tomates.
Meninos não entram nem saem correndo de casebres. (Meninos
não entram nem saem correndo de casebres impunemente.)
E a devastação que se previa – a devastação não veio.
Neste dia que não amanhece não se vêem mulheres sedutoras
(ah, que sedutoras as mulheres!).
Os ouvidos se recusam a escutar discursos. E os telefones, a
tocar.
Em todas as ruas o asfalto
enrugou. Nas cozinhas, as facas não cortam. Nas mangueiras, a água não corre.
As ilhas se incorporaram aos continentes. Os caminhões
ficaram cansados. Os panos se recusam a rasgar. Os pedreiros bem que
queriam, mas as paredes não se deixam demolir.
Nas ruas, não se vêem jovens perplexos.
As palavras não aceitam mais letras maiúsculas.
Nas calçadas, acabaram-se os tropeços. Nos museus, o cubismo
não tem mais sentido.
Os cofres se recusam a ser trancados, os pinos se recusam a
entrar em suas sedes, as tumbas se recusam a admitir cadáveres. E as noivas se
recusam a morrer no dia do casamento.
Os uniformes não uniformizam. Os impulsos arrefeceram. Os
espasmos sossegaram. Nos músculos enrijecidos, os tremores acabaram.
As folhas não têm mais versos.
As mães desistiram de parir.
Todos pararam de envelhecer.
Neste dia que não amanhece, é como se o mundo estampado numa
folha de gibi abrisse de supetão a camisa num gesto extremado de expor o peito
viril e gritasse: “Chega de esperar milagres!”
Sobretudo – neste dia
que não amanhece –, os parafusos se recusam a entrar nas porcas. O fogo se
recusa a esquentar. As agendas não aceitam mais horas marcadas (sejam
consultas, encontros, compromissos que nunca mais serão inadiáveis).
Não há pistas. (Não há mistérios.)
Não há sonhos. (Não há futuro.)
Mas há, neste dia (e em todos os santos dias), (em certos
rostos), um sorriso recatado - o sorriso dos humilhados que não se cansam de ser humilhados.
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