Lance sem jogo

Meu trem apita atrás da última curva
Em breve estará aqui
Queria ser mais preciso
Mas não vou me preocupar com detalhes
Na hora da partida

Escuto meu trem chegando
Hendrix também escutou
A todos que pensavam ter o azar de estar
Por perto
A guitarra dilacerante
Angustiada, desesperada
Desesperadora, revoltante
Parecia apenas coisa
De adolescente
Adolescente que era, a mim também
Por décadas dei graças por não ter sido
Diferente
Por décadas optei pela auto-enganação
Olhando em volta, quem não?
Desde que comecei a tomar consciência
Das coisas
E ciência do mundo
Tenho esta maldita mania
De olhar em volta
Que é que espero tanto, afinal?
Ainda não sei e nunca haverei de saber
O que sei é que esperar me deixa exausto

A vida demora demais
Por que tudo não nasce, existe e acaba
Em meros três segundos?
Seria suficiente para nos provar a todos
O sentido de “tudo”, não seria?

Para Franz Kafka o sentido da vida
É que ela acaba
Certa vez, numa mesa de buteco, disse a uma estudiosa de Aristóteles  que todos os sistemas filosóficos não valem um centavo diante dessa afirmação. A moça me olhou incrédula. Se recusou a considerar a possibilidade. Passados uns segundos, vislumbrei um brilho de extrema decepção em seus olhos. Os músculos da face parecem descer alguns milímetros. Em seguida testemunhei um valente esforço de superação. Não ia se dar por vencida depois de décadas de dedicação aos grandes pensadores que nos explicam desde a Grécia antiga. Não, o fantástico, incomensurável monumento que vem sendo erigido há milênios não haveria de desmoronar sob um dístico patético de oito patéticas palavras. Por um átimo vi passar por seus pensamentos, como naquela introdução dos jogos da Copa em que cada jogador aparecia cruzando os braços, o grande time formado por Platão, Sartre, Kant, Nietzsche, Russel, Heidegger. Os campeões do espírito humano não podiam sucumbir ante um simples romancista, por mais genial que fosse. Seriam, no mínimo, tão geniais quanto.
O sentido da vida é que ela acaba. Kafka deu um nó na lógica. Botou os racionalistas pra correr como se fossem humanos repentinamente convertidos em baratas. Qualquer filósofo que se arrogue seriedade deveria começar daí.

Escuto meu trem a se aproximar
E vem que vem que vem desde que existo
Tentei não o escutar, admito
No pôr do sol de certos dias
No nascer do dia em certas madrugadas
Fazendo que não era comigo
Não era eu o passageiro
Não era eu na estação
Outro o escutava em meu lugar

Escuto passos subindo a escada
Uma voz chama meu nome
De todas as vezes em que meu
Nome foi chamado
Me congratulo por não ter de
Responder



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