Só quero me sentar no alto da escada e assistir o fim do dia

Sílvia, pode parar com a dissimulação, sei que você e Sô andam se encontrando às escondidas. Quer dizer, você anda, Sô sempre faz tudo absolutamente às claras, já te disse, é a pessoa mais honesta que conheci, resolvida, quem é mesmo que vivia reclamando que eu nunca seria um sujeito resolvido?
Lembrei, era você.
Como dizia minha avó Celestina, o mundo dá voltas e isso é muito bom, muito bom para mim, se tem um cara para quem o mundo dá voltas esse cara, você sabe, sou eu, você sabe, se fosse desses sujeitos que vivem declamando eu-sou-assim, eu-sou-assado, eu-sou-fudidaço, eu-faço-e-aconteço, desses sujeitos que têm um mote e aplicam seu mote em todo lugar a qualquer hora na fuça de qualquer um não dando a mínima ao constrangimento que causam nos outros quando entre os outros há um cara cheio de pudores que nem eu, o meu, o meu mote seria não-falei? você não quis me dar ouvidos, agora aguenta, agora toma, agora fôdasse, agora toma, agora aguenta.
Ah minha querida Sílvia, Sô me contou. Fiz que não. Não. Não. Não. Não acredito, benzinho. Sílvia não. Tá enganada. Sílvia não permitiria. Poderia ser qualquer uma, ela não.
Quer dizer que você engordou algumas arrobas e tá balofinha feito uma leitoa de Natal? Não. Não. Não.
Minha Sílvia não.
Olha as fotos aqui, Sô pegou o celular e começou a cutucar.
Não, não, não. Não quero ver. Não quero ver Sílvia gordinha, Sílvia gorducha, Sílvia fofinha, Sílvia balofa, Sílvia abarrotada de substâncias graxas.
Imagina minha cabeça o momento em que Sô me contou.
Imaginou?
Impossível né?
Nem eu seria capaz.
Depois daquele momento tentei vários exercícios, lembra? lembra dos meus exercícios mentais, intelectuais, emocionais, sentimentais?
Lembra sim senhora. Vivia debochando. Não um deboche escancarado como qualquer outra. Mas aquele teu, aquele fininho, aquela estrelazinha luzindo quase invisível nos lábios, a condenação a triscar atrás do olhar, pretensamente inacessível à minha percepção e, se percebida, imprópria como prova à minha acusação.
Ah meu amor, quantos infindáveis exercícios implementei em teu nome, hasteei em tua honra, macerei por tua buceta na solidão escura do meu mundo em permanente dissolução, sempre aflito por prever a próxima volta e garantir que teus imprevisíveis folguedos não me atirassem num lixão de amores numa dessas minhas dimensões da qual jamais seria capaz de escapar.
Olha só essa, morzim. Sô empurra o celular pro meu lado.
Ah amada Sílvia, lembra dos meus exercícios... meus exercícios...
Sô aperta meus lábios com um indicador.


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