Amorokê na vila - Capítulo 036


aprendi ontem
(Devo estar atrasado, ou talvez seja apenas um falso rumor, daquelas fofocas rancorosas que circulam entre a pia e a latrina na hora em que as refeições que foram ingurgitadas mais uma vez são jogadas nos baldes de merda),
aprendi ontem...

Antonin Artaud

Órbita em torno de nada, não tá na cara?
Tinha decidido não escrever mais hoje, mas minhas decisões só duram 3 segundos, tempo bastante para decidir que decisões são sempre erradas. (Sei.)
Ter blog é complicado. Minha cabeça está cozendo/cosendo o assunto há dias. Mas vou deixar esse papo para outra ocasião, quando amadurecer. À minha revelia. Ou, espero, apodrecer. Você sabe, nossas cabeças têm vida própria.
Se escrevesse hoje, ia ficar embananado, palavroso, devaneante e onírico no mau sentido. (Sempre é o caso do que quer que seja onírico. Em que pese ser o onírico e o sonambulismo meu habitat.) E tem mais: neste momento estou cuma raiva de dar medo. (É meu estado mais comum. Vou ver se consigo uma brecha amanhã de manhã.)
Agora quero falar da Soninha. Não posso casar com a Soninha. Ela já é comprometida. (Com o pai, Lacerda, dono de bar. Que a come todas as tardes na despensa nos fundos do boteco.) A última vez que dancei, The Animals, tinha 14 anos, quando tomava uns trecos barra-pesada. Minha dieta diária são 4 maçãs. Meu recorde é 8. O único problema da Soninha é que ela não aguenta beber. Se encachaça com duas meias cervejas. Preciso de alguém que se afogue de uísque comigo. Já vi gente que nunca ficou ébria na vida. E já vi gente que curte farejar o buquê duma taça de vinho, se possível seco.
Ufa, parece que desandei no palavreado mais uma vez. Vou tentar manter a sobriedade.
Fico sentado 18 horas/dia mas minha bunda é rígida qual a dum cadáver. Já tomei um ou dois banhos de cachoeira na minha vida. Num deles quase me afoguei. E já morei no mato. Caminhava uns 5 km por dia, hoje só saio de casa uma vez por semana para comprar cigarro e birita. É, no boteco do Lacerda. Ok, podia fazer logo um estoque e poupar o trabalho, mas tenho de ver a Soninha regularmente. Ela é a razão desta minha vida de cachorro, embora seja feiosa qual o pai. Me prometeu me curar a brochisse. Daí as sessões trissemanais. Ficaria com ela duma vez por todas se minha ex-mulher Sílvia tivesse a decência de sair da minha cabeça e deixar minha inexistente alma em paz.
Livros, vou ciscando aqui e ali, quase sempre no computador, leio umas 4 hs/dia, o último em papel que li até o fim foi Inveja e gratidão, M. Klein, há uns 20 anos, despenquei num abismo depressivo e nunca mais superei. Acho que foi então que tive a prova cabal de ser maluco clínico. Já tomei choque. Um baratão — qualquer dia quero de novo.
Hollywood, não consigo aguentar mais de 2 minutos. E se alguém me bota diante dum "filme de arte" tenho gana de sacar a pistola no melhor estilo Goebbels. Bin Laden errou — devia ter mirado a festa do Oscar, fazendo farofa de brads pitts, angelinas jollys, spielbergs e outros superherois e assim dado um alento à raça humana. Durante anos resisti à tevê a cabo, até que ano passado alguém aqui em casa mandou instalar à minha revelia. Só não atiro a tevê pela janela porque às vezes assisto a festa dos 95 anos de minha mãe. Se eu não esticar as botas antes dela, quero registrar o velório da velha em devedê. Assim terei algo para fazer quando não estiver no computador.
Meu guarda-roupa? Bom, o que meu guarda-roupa menos guarda é roupa. Entre uma mixórdia de badulaques tem apenas um paletó que aposentei ao desistir de vender toalhas para os turcos da 25 de março e duas calças de tergal que já não dão conta da minha barriga que, ao contrário de peter-pan, aparentemente decidiu não parar de crescer, contra minha vontade e parecer técnico. Meu médico recomendou persistir na terapia etílica. Pelo jeito vai levar mais uma década para fazer efeito. Na gavetinha de cima do guarda-roupa ainda tenho a última carta que mandei para a Nicinha, uma das minhas inumeráveis paixões pós-adolescência, carta que ela me devolveu sem abrir e que até hoje sei de cor.
Queria fugir de Sampa com a Soninha, mas me arrepio com a ideia. Primeiro porque o Lacerda ia me caçar até o fim do mundo por fugir com sua filha-amante. Segundo porque não sei se tolero por muito tempo a Soninha e seu rostinho de camafeu a aquele sorrisinho evasivo, inquiridor e insolente.
A maior parte do tempo vivo pré-armado c'um espírito amistoso que na hora agá sempre sai pela culatra, eterno moleque encabulado, mãos perdidas buscando o abrigo dos bolsos, surdo para o azáfama dos carros na rua e dos vizinhos. Gosto de beber no boteco do Lacerda porque fica numa esquina. Assim tenho mais rotas de fuga. Embora não faça muito diferença, pois quase sempre estou inundado (em vários sentidos).
Se fugíssemos, tenho certeza de que meu coração ficaria acelerado de paralisia, em permanente expectativa do alarme e do 38 do Lacerda. Não me perdoaria a imprudência e passaria cada momento doido de vontade de socar a cabeça contra um poste por ter caído na minha própria armadilha. Por que não fiquei no meu cantinho? Todas as vezes em que tentei concretizar minhas fantasias foram um desastre. Embora até hoje o pior que me aconteceu tenha sido uma ou outra bofetada de algumas ex-namoradas.
Por hoje é só. Agora tenho de ir na feira com dna. Jussara, mãe de Soninha. Curto ir na feira com ela porque vou analisando as fachadas das casas enquanto levamos um lero sobre os preços da batata e da cebola. Manjo um tico de arquitetura, guardei umas lições da época da faculdade, nas noites em que não estava de porre ou em que não esticava a bebedeira no balcão do Bate-Pinga, saudoso botequim que ficava na Corifeu de Azeredo Marques na entrada da Cidade Universitária, hoje substituído — ó praga — por uma academia de ióga. (Outro dia falei "ióga" não lembro onde e quase apanhei. Por que será que os ioguenses perdem a fleuma hinduísta e logo querem briga por causa dum ózinho mais aberto?) Vou omitir que uma razão secreta que me leva à feira é que me divirto com os olhares coquetes com que as donas de casa apreciam meus dotes físicos. Pois é, sou bem-feito de corpo. Parece que, quando saem para comprar seus víveres semanais, elas deixam a pudicícia em casa. Ah, se os maridinhos pudessem flagrar as sem-vergonhas. Qual caquis maduros, algumas até que são comestíveis, se você escolher direito e apalpar no lugar certo, tomando cuidado para não estragar. Feira-livre é melhor do que bienal das artes, mesmo com aquelas gostosas siliconadas que capitaneiam os estandes e nas quais eu não me atreveria a botar a mão. Já cometi a façanha de ir numa bienal sem olhar um único quadro. Outro dia tinha um nordestino vendendo uns anões de jardim depois da última banca. Aproveitei e trouxe um para casa. Onde vou pôr, nem imagino. Bidu, não tenho jardim.