Amorokê na vila - Capítulo 035

Acredito profundamente em ser minimalista. A menos que você esteja de fato partindo para resolver o problema geral, não tente montar uma estrutura para resolver um problema específico, pois você não sabe como será essa estrutura.

Anders Hejlsberg

Até porque.
Mas vamos ao que interessa.
Você quer fofoca. Quem não quer? A fofoca é a forma mais simples e direta com que um terceiro nos descreve um segundo e, o melhor de tudo, nos escalando ouvinte privilegiado da descrição e, melhor ainda, nos envolvendo no enredo da vida do terceiro nos agraciando com a benção da interação. E, ainda melhor, a fofoca versa sobre o que para nós é o mais importante: pessoas. Se falar de pessoas ricas, legal. Se falar de pessoas ricas que amam, lindo. Se falar de pessoas ricas que trepam, e trepam numa fúria e duma forma que ousamos imaginar só em sonhos, ótimo.
Eu também fiquei decepcionado com as anotações vagas e quase abstratas do escritor amigo do tal de Fred.
Fatos, até que revela, mas poucos e esporádicos, E quando o faz o faz en passant, os adindo incidentais e irrelevantes, próprios para a lixeira.
Li a primeira vez até porque, que então parecia tão inofensiva e que dali em diante viraria praga, em Minha razão de viver em que Samuel Wainer conta que foi ora chegado ora desafeto de todos os poderosos da República a partir de Vargas. É um livrinho, com perdão da palavra, didático, mostrando quanto um jornalista que vira amigo de poderosos torna-se omisso com a desculpa de assim poder continuar fazendo parte da corriola e passar ao leitor “informações” de primeira mão. Embora eu sempre tenha sabido da porqueira que rola entre jornalistas e políticos, o livrinho me deixou meio enjoado. Essa gente que cobre o “círculo do poder” pode ser tão escrota quanto os mandachuvas. A promiscuidade come solta. Será verdade que aquele presidente engravidou uma jornalista? Difícil de acreditar, não é? E aquele ex-presidente do Senado cujo nome olvido que teve filha com a jornalista que depois mostrou as pudendas numa revista? Esse pessoal pululando em torno dos grandalhões da República faria melhor se abrisse para a gente o lado, digamos, mundano de suas relações profissionais, tipo “ontem transei com o presidente da Câmara e descobri, para a minha própria surpresa, que não dou importância a tamanho, salvo quando se trata daquela graninha por fora para o leite das crianças”. A circulação dos jornalões ia dobrar da noite para o dia. Quem sabe seria a salvação para o número de leitores em queda há uns anos, o pessoal parece mais interessado em interagir e dar uma de autor na rede do que ler notícia mofada do que houve há centenas de meses, ou seja, ontem. Faz uma cacetada que matutos digitais sacaram que a verdade jornalística é papagaiada e que não existe essa de visão objetiva e nós queremos é impressões individuais dum mundo cada vez mais refratário a explicações. Os telejornais aboliram a notícia e toda noite jogam na nossa cara de bobo um angu feito de sangue e terrorismo espetacular salpicado das inefáveis “informações” sobre o dólar, a bolsa, o tempo e, novo filão dos produtores da tortura em que se converteu a tevê, o tamanho dos congestionamentos. Isso não vai, não pode durar mais dois ou três anos, ninguém seria, acho, estúpido a ponto de engolir essa escrotice, a cada quinze minutos entrando uma trilha sonora alarmista para a mocinha carinha de sonsa “informar” que há 143 km de lentidão e estamos com 23 graus na av. Paulista, santo padre. E, suplício de todos os suplícios, dá-lhe Lula no palanque rodeado de coronéis nordestinos assentindo caninamente enquanto o salvador da pátria pela enésima vez vocifera em sua sofisticada tonalidade jato de areia contra a elite da qual ele mesmo faz parte há 40 anos e a igreja e a imprensa e o Congresso e os países ricos como se o presidente da República fosse eu, quem me dera, não ele. E, a cobertura política, que é que há para “cobrir” afinal? Durante uma boa parte da minha vidinha de inseto padeci dessa curiosidade idiota sobre o intramuros dos palácios e sua fofocaiada inócua. Atrai e ilude o leitor que confunde diz-que-diz e jornalismo. Editores sabem e escalam meia dúzia de relações-públicas para a fazer plantão no Planalto e no Congresso para no dia seguinte nos “informar” do que Dudu disse de Juquinha, lastimavelmente omitindo que Juquinha comeu Dudu e Dudu traçou a mulher de Zezinho.
Há uns anos ganhei da patroa um tijolo acho dumas 600 páginas escrito pelo alcoviteiro palaciano Carlos Castello Branco, nenhum parentesco com o ex-presidente sem pescoço, que narrava minuciosamente o cotidiano dos milicos por corredores e gabinetes. Parava aí, quando os outros aposentos é que valeriam a pena. Não lembro em qual jornalão escrevia, tinha uma “coluna do Castello” citada por todo mundo e sua manicure, lembro que lia esporadicamente sem dar bola, não sei por que cargas d'água-furtada Sílvia cismou que eu ia querer vinte anos de mexerico político empacotado num só volume. Enfiei o calhamaço no fundo duma estante qualquer e só bati o olho nele de novo outro dia quando fuçava à procura duma coletânea de artigos contendo aquele em que Carpeaux desce o ferro em Huxley, que achei deveras intrigante quando li a primeira vez, assaz curioso quando li a segunda, me soando algo de implicância com o baita sucesso que Huxley, menos erudito que Carpeaux mas ganhando em sagacidade, sempre fez entre a rapaziada sôfrega de entender o mundo, que Huxley procurava traduzir sem se emaranhar numa obscura mitologia germânica medieval lá.
São essas, acho de novo, minhas reflexões voltairianas, quando olho para o balcão e meus olhos dão com os olhos viajantes do Lacerda.
Mais feio que encoxar a mãe no tanque, o Lacerda foi compensado por deus com um tico de imaginação e criatividade, embora às vezes me faça duvidar que seja defacto humano e não protótipo experimental dum engenheiro genético infiltrado entre os fregueses do buteco.
É dos poucos, senão único, donos de bar eruditos que conheço. Tinha o Luizinho, retirante né em Brejo do Piauí que me servia no balcão do Bate-Pinga segunda, ou terceira, na Valdemar Ferreira à esquerda de quem entra para a Cidade Universitária, defronte uma churrascaria cujo nome me “escapa” e de cujos frequentadores dandizinhos garanhões e dondocas taradas assexuadas saindo de carrões e passando o volante a manobristas primos do Luizinho também naturais de Brejo do Piauí espanando felpitos imaginários ou não e esticando vincos e rugas com dedinhos nervosos dos terninhos de tergal e vestidões de baile ficávamos rindo anóxicos inebriados de soberba revolucionária, moleques ingênuos crentes que em breve escorraçaríamos os generais dos palácios, faríamos de dândis e dondocas nossos lumpen-servos. À medida que os grãos finos trotavam pernaltas para o restaurante com o rei-na-barriga de afluentes ignorantes cabeça de vento, teatralizávamos do outro lado da rua qual escolheríamos para chauffer, faxineira, coiffeur, jardineiro. As dondocas nove ponto cinco na escala Richter designávamos camareira particular. Dandizinhos mais bufões, mordomo. Escravo sexual não vale, alguém esgoelava, a revolução ainda não chegou lá, maconheiros promíscuos éramos todos mas nos avexava explicitar taras, a esbórnia sexual, vejo, está começando apenas hoje, os pré-adolescentes fornicadores atuais num só mês trepam mais vezes e com mais parceiros do que eu em toda minha existência de casto coagido, naquela época baixávamos o olhar puritano, hipócritas como nossos pais. As meninas bolshevikes, muito mais decididas e promíscuas que nós machos — como falavam aquelas viragos, deixariam Fidel no chinelo num concurso de resistência em palanque, ferocidade pittbulliana, muitas topariam numa nice um cargo de ajudante de ordens do delegado Fleury, que acabou com a raça duma meia dúzia de esquerdizoides antes que estes acabassem com a dele, tarefa de que se desincumbiriam com proficiência, seguramente levando “serviço para casa”, preservando distância higiênica dum maricas vocacional feito eu —, concediam que, tudo bem, dariam para o Chê, pero le lambiendo los pies sólo tres veces por semana. Membro da doidivanas Libelu trotskista, o mais anárquico, um dos dois únicos não puros-sangues da troupe, seguidores fiéis de Bakhunin, juntamente cum japonês chamado Mário cujo anarquismo autêntico, eu sentia na pele, me dava calafrios em meus pesadelos em que me via desmascarado em meu papelzinho de burguês cagão travestido de terrorista de botequim e que, estava certo, empalaria, se tivesse chance, a filha dum general por dias a fio tal como os torturadores da Marinha faziam com as donzelas revolucionárias que lhes caíam nas garras, me apavorava inconfessamente a ideia de um dia ver no alto do pódio um suicida assassino como aquele japa sorridente de sorriso, com perdão da imagem sovada porém verídica, sinistro. Às vezes, enlevado por uma jarra de batida de maracujá com pouco gelo, pouco maracujá e muita cachaça, um stalinista da Caminhando empunhando um violão a relinchar para não dizerem que não falei de flores, porcaria infantiloide que só virou hino da esquerda universitária porque proibido pela censura dos milicos, expert em proscrever e levar às paradas bugigangas que de outra maneira cairiam no mais inelutável olvido, censores que tacavam o pincel atômico em qualquer bobagem que mesmo remotamente parecesse carmim ou cravo, metade do que “libertários” do naipe de Chico Buarque, hoje de olhinhos tão singelamente fechados e língua solenemente morta ante os desvarios totalitários cometidos pela nova casta de sindicalistas emperucados no poder ávidos por macaquear o estilo de vida dos ricaços que sempre condenaram, com a safada desculpa de não querer dar pano à direita, a sambar no bloco dos carregadores de “bandeiras” enquanto fôdasse a verdade, às vezes um stalinista violeiro ouvia nossas piadinhas escrachando a luta de classes e tentava nos passar um pito resmungando que libelus sem fibra nunca faríamos a revolução porque levávamos tudo na brincadeira, vaticínio de cuja confirmação só vim a me dar conta quando outro dia olhei e de repente vi na manchete do Estadão foto de Joe Dirceu de grão-vizir de Lula com aquele olhar tá-no-papo de réptil lá. Os calafrios não me abandonam. Quem conheceu um stalinista a olho nu sabe como é. Eu e o japa pedíamos pros órfãos de Stalin tocarem Mutantes, a primeira e única banda, com perdão do palavrão, iconoclasta do nosso horizonte perdido, heresia a que os bolshevikes missionários tinham ganas de nos excomungar a paulada, de que nos safávamos na base do gogó, pois que lêramos pelo menos Que fazer, o Dezoito brumário e o manifesto aquele, ao contrário dos joe-dirceus pragmáticos cuja cultura se resumia a meia dúzia de mandamentos maoístas.
Vezes raras eu decidia sair do Bate-Pinga e rumar para a ECA ao invés de dar a volta na Vital Brasil e pegar o outro buteco em que costumávamos nos reunir para deliberar sobre os rumos do Berção, de repente me ocorre que hoje eu podia ser um ministro aí com cartão corporativo, cota de diretorias na Petrobrás e outras benesses mais se tivesse perseverado naquela vida de vagabundo, se há um dito popular que aprendi a prezar acima de todos é “meu, o mundo dá voltas”, e nessas raras vezes o Luizinho insistia em me acompanhar até a sala de aula em que se convertia no único a prestar atenção na arenga do professor enquanto nós “politizados” prosseguíamos heroicos a deblaterar no buteco nossa trama para salvar o Berção do fascismo e outras aventuras quixotescas. Os olhos do Luizinho brilhavam excitadérrimos nos assistindo deblaterando efervescentes do outro lado do balcão as razões históricas do atraso nacional, Caio Prado Júnior nas pontas das línguas, a irresponsabilidade das elites, a validade das táticas estudantis e, épico dos épicos, qual seria nossa estratégia para chegar de mansinho a Brasília e pedir educadamente ao gal. Figueiredo que cedesse o trono a um de nós pelo menos por uns dois anos, que imaginávamos suficientes para converter o País no mais deslumbrantemente infinito canavial jamais visto na Via Láctea, instalando de km em km espantalhos com a carona do Fidel para afugentar os abutres capitalistas.
O Luizinho, saquei logo, levava jeito e por isso não me importava de arrastá-lo comigo à aula esporádica e às orgias à Calígula em geral levadas a cabo e rodo no prédio da História e outras menos populares. Leu toda a coleção do Darcy Ribeiro que uma professorinha condoída dos destinos das massas lá nos passou e que comprei a princípio entusiasmado com a, ugh, perspectiva de entender duma vez por todas os milhões de problemas incompreensíveis da Sexta Potência Econômica e que duas semanas depois lhe presenteei sem nem tirar o invólucro de elastano. O Luizinho a esta altura deve ter descolado um empreguinho público na prefeitura de Brejo do Piauí como qualquer filho que não foge à luta inteiramente devotado ao roubo e à corrupção. Provavelmente o piauiense está levitando sob as estrelas do sertão, muito melhor que eu, que renunciei a belos cabidões na Caixa Federal e na Secretaria do Planejamento de SP enojado, sou, afinal um carinha honesto e otário, com as pequenas e rendosas panelas que se formam em cada saleta fétida dos arranha-céus abarrotados de barnabés de papo para o ar e que se trabalhassem uma hora por dia certamente produziriam a segunda revolução industrial. (Preciso maneirar na musicalidade, vão pensar que não passo dum vate sem-vergonha.) Os libelus, não sei que fim deram, parte criou algum partidinho manero para proteger funcionários do Banco do Brasil que levam todo santo mês trocentas pilas na conta bancária e juízes com dois meses de férias por ano e seguro médico e odontológico e qualquer outro imaginável, afinal somos um povão feliz que não se pode dar o luxo de correr riscos, ao trôpego passo que os stalinistas da Caminhando entraram todos sob as cálidas asas de Lula.
Eu dizia que o Lacerda, mais feio que bater na mãe na Sexta-feira da Paixão e compensado por deus com tremendo poder imaginativo e engenhosidade e erudição, colou com durex um pedaço de cartolina na parte posterior da registradora em que estava escrito “Fiado só amanhã”, letrinhas grandes esmeradas da, como já disse, esposa dona Juçara.
Peguei e, vozinha fininha e débil, protestei.
Ao que o Lacerda me passou um carão, emendando:
“Até porque...”
Se cágado tivesse voz, seria assim.
Desliguei. Recolhi minhas milhares de anteninhas ouriçadas tentando captar todo e qualquer fenômeno desses com que a vida nos presenteia a cada segundo e que os 23 bilhões de futuros escravos dos chinas teimam em não acusar.
Uma ficou sintonizada. Por mais que pratique, nem sempre logro consumar minha técnica de me fingir de morto, que venho treinando desde que nasci e os anos seguintes de amarga obsessão por retomar aquela terna quinzena anos de amamentação que me deixou o gosto indelével da vida sob a língua.
Falei que até porque era a puta o que o pariu.
O tom dele subiu quase uma oitava de dó sustenido a si. Uma súplica. Fiquei enojado. O fedepê sabe ser repulsivo quando quer. Já pedi, várias, centenas de vezes, me avisa antes, me avisa antes! Sempre que for tascar um “até porque” a cada dois períodos em tudo que jorra copiosamente dessa vossa gargantinha de ouro, bota uma palavra de alerta.
Fred balança a cabeçorra, se divertindo.
Fred gosta duma citação creditada a Bakhunin: “O mundo será um lugar melhor quando o último burguês morrer enforcado nas tripas do último padre e afogado no sangue do último militar.” Será?