Amorokê na vila - Capítulo 034


Véspera de primavera


Um mar de sujeira corre na rua. Se abrir a porta as fezes poderão invadir minha sala.
Há décadas não troco os lençóis e a fronha do meu travesseiro, fósseis de “marcas de amor”, mamãe ficaria uma fera, não tenho jogo de reserva mas hoje decidi arrumar a cama.
O problema é você se habituar por convivência ou proximidade. Vivo com a nojeira à minha volta mas não me habituo. Meu projeto de vida era não me deixar contaminar.
Soninha tem seu projeto de vida. Falar-tudo-que-lhe-der-na-telha. Não dá bola para a sujeira. E se funcionasse também comigo? Fico um milímetro esperançoso. Já experimentei, claro. Tempos imemoriais. Desembuchava minh'alma entremeado de carreiras de palavrões. Então estamos combinados, caralho. Amanhã dou uma passada, puta merda. Talvez leve uma amiga, merda, tem uma bucetona agasalhadora coberta por uma schwarzwald de pentelhos pra gente descontar estas nossas descompensações existencialistas, porra.
Veja, não é a visão moralista da sujeira daquele taxi driver em Nova York. Dois terços da raça chafurda no esgoto e está feliz e não sente necessidade de justiça e outras ingenuidades. Falo da minha sujeira.
Minha cama está cheia de pentelhos. Alguns grisalhos, provavelmente meus, outros loiros tingidos da Soninha, outros morenos da Sílvia, outros indefinidos. Durmo num museu. Não é hoje que vou bater os lençóis. Arrumo a cama fumando um cigarro e em vez de beber saio para a praça aqui perto. Passo a tarde sentado assistindo à algazarra dos passarinhos e à noitinha sou roubado na esquina sob o luar por um cafuzo empunhando um 38 de plástico.
A Soninha tinge o cabelo e os pentelhos de loiro, menos as sobrancelhas. A sujeira me trava e preciso me lubrificar.
Che mondo piccolo questo nostro, cochicho no ouvido do cafuzo enquanto ele me revista procurando meu celular.
Não tenho celular. Ele não acredita. É verdade, rio. Ele fica furioso. Não tenho celular, dinheiro, cartão de crédito.
Tentei várias vezes cair fora. Foi a mesma época em que achava todo mundo hipócrita. Aquela trajetória manjada que nos horroriza quando nos damos conta do clichê metafísico e ficamos desenxabidos com a nossa exasperante falta de originalidade. Eu sou feliz, fôdasse, enxergando a hipocrisia por toda parte. É bico? Puta merda, é tão fácil entornar meia garrafa de balla em 20 minutos sabendo que vou recomeçar, recomeçar, recomeçar.
O cafuzo quer me matar mas como me matar se tem na mão um cano de mentira?
Considera me esganar. Mede meu tamanho, sou o dobro dele. Posso lhe mandar um muquete no pé do ouvido. Me limito a repetir, che mondo piccolo questo nostro. É o empacotador do mercadinho em frente ao buteco do Lacerda.
Estupidificado de crack e perplexidade com a enrascada em que se meteu, o cafuzo pensa que a frase em língua desconhecida vem do além, que para esses caras é muito maior e mais verossímil e mais paradisíaco que o aquém. De minha parte ainda sopeso dar um tapão na cara dele, berrar que estou sendo assaltado e assim disparar um linchamento para ver se espanto um pouco o tédio deste meu lusco-fusco sob o luar encardido.
Mas o 38 plástico também me deixa confuso. Se fosse de verdade pediria para ele me soltar um teco na testa. Encharcado de crack, ele não entenderia, as sílabas cantadas no idioma estranho ainda reverberando em suas orelhas escalavradas dos açoites no pelourinho. Não se conforma com a viagem perdida. A frustração atávica e o envenenamento exigem um maremoto de gratificações assoberbantes instantâneas. Um segundo é uma eternidade intolerável. Impossível que eu não tenha nada. Todos os bocós que trafegamos para cima e para baixo sem destino certo pela cidade somos fontes inesgotáveis de felicidade imediata.
Saber fazer média é o que distingue os gênios dos jumentos. Não tenho a mais diminuta ideia de como fazer média. Nem como fazer um strip. Posso tentar, se quiser, seu cafuzo. Que música você prefere? Posso começar tirando esta minha camiseta imunda que não vê água desde que nasceu. Se preferir, digo que não uso cueca. Devo alertar que sou um sedentário convicto, o que tem afetado o volume da minha barriga há umas três décadas. Acho que aprendi algo com o espetáculo do crescimento das minhas células graxas. As banhas aos poucos vão tomando o lugar da esperança e acabam desempenhando o papel que antes pertencia à possibilidade de felicidade. E as papas que então me faltavam sob o queixo e na língua.
Não tenho celular, dinheiro ou cartão, tudo de que disponho sou eu mesmo. Me leva inteiro com minha experiência e minhas dores e neuroses de marmanjo inexperiente. Podemos até formar uma dupla. Talvez acabemos nos casando. Ele faz meia-volta e dá no pé.
Volto para casa querendo fazer polenta não querendo voltar para casa ou ir a lugar algum não querendo fazer nada. Quando estou assim tenho vontade de me matar em praça pública. Fazer polenta é dos meus tempos em que olhava em volta achando que o mundo e seus habitantes eram autênticos. Antes da polenta de esgoto cozinhando everywhere. A autenticidade me era tão essencial quanto o ar. O mais autêntico de tudo era a noite. Aquela minha noite que nunca morre, que ainda me faz me dar o trabalho de flexionar a nuca e olhar o céu. Olho o céu pela minha noite sem procurar nada em particular. Então abaixo o olhar para encarar a parede. E o chão. O vapor da polenta repugnante sobe para se acumular no céu e não há nada escrito nas nuvens nem em lugar algum. Quando saio para minha praça para me juntar aos meus passarinhos barulhentos e aos meus cafuzos restos de lixo do cosmos vejo letras enfileiradas em placas de anúncio nas ruas e nos ônibus, vejo letras enfileiradas nas embalagens de detergente e mata-pulgas e nas latas de chocolate e nas capas dos livros e nas folhas dos livros, letras enfileiradas por toda minha volta, letras enfileiradas que querem me dizer tudo e não me dizem nada.
Engordei e procuro me ater ao que penso ser essencial, e o essencial hoje está tão distante do que me parecia essencial há três décadas. Naqueles tempos acreditava no que me diziam e no que me mostravam. As coisas não tinham começo nem fim, faziam parte natural. Até que passei a achar a vida meio insossa e carregar no dramático. Quando posso, bebo até cair para que cada um dos meus dias termine num gran finale. Na época em que mamãe fazia polenta tinha vindo a este nosso — sim, meu e dela — mundo como convidado da produção do espetáculo.
Vou voltando para casa sem querer voltar para casa, nada tenho de que me orgulhar, tampouco de nada ter de que me orgulhar. Podia me orgulhar dos meus pensamentos deformados pelas minhas palavras em cacos instáveis, fugazes, ariscos ao jugo da lógica, que se vão transportando soterrados em nós que não me são motivo de orgulho que me são motivo de dor e pasmo e impotência e frustração. Não vejo problema em me orgulhar de frustração e impotência e dor e pasmo. Assim como não vejo para que me orgulhar do que quer que seja se vivo por tudo e por nada, se sonho com o imprevisto, se aguardo sem esperança e se me uno à ruptura. E se a ruptura é impossível, como parece de fato ser, e me desconcerto que sejamos sobreviventes do rompimento umbilical e sobrevivendo buscamos e sobrevivemos buscando a eterna reunião, posso me contentar com rupturas, assim no atacado, assim de cambulhada, assim de ponto sem volta e dor sem trégua. A continuidade da vida e das coisas e do tempo me consola e me tortura, me tortura e me consola. Sei o que espero fazer daqui a pouco ou amanhã, pois mês que vem estarei morto e quererei estar mesmo que não esteja. Espero o imprevisto mas não, não espero nem almejo a me entender nem espero ser entendido. Recuso as facilidades do conhecido, não sou dado a exploração introspectiva, não sou dado, tirado, recebido ou festejado. Não me delicio, não me encanto. Não me entrego a nada, por nada me entrego. Por nada me comungo. Há uns tempos me admirava com o mundo e os que o habitam, agora só me admiro por ter levado tanto tempo para me assumir rastejante até acabarem todas minhas saídas e me entregar incondicionalmente às crueldades do meu deserto noturno. Sei que há de tudo neste nosso mundo que também a contragosto habito. Inclusive gente como eu. Nunca vi ninguém como eu, mas imagino que, sim, há. E são poucos. Talvez um no Mato Grosso. Outro em Uberlândia. Em Frankfurt. Um hoje soterrado por uma bomba num deserto nas cercanias de Bagdá, outro daqui a pouco se matando para doar um rim meia-boca a um irmão. Sim, há de tudo por aí. Inclusive gente como eu. Embora “inclusive” seja uma palavra que gente como eu não ousa usar. O nada, inclusive. Inclusive mesmo assim.
O cafuzo se assustou com minha oferta de casamento. Agora sei que devia ter pedido em italiano. Podia também ter lhe oferecido algumas noites no meu alpendre em que eu discorreria sobre Mahler e depois leria J.G. Pessanha em voz alta, tentando explicar certas passagens mais intricadas, atento aos espasmos de indiferença em seu rosto pueril de assassino cósmico. Seria bom ter um cafuzo cativo que me obedecesse todas as vontades. A Soninha bem que tentou uns dias, depois resvalou de volta aos seus sertanejos e novelas. No meu aniversário perguntou que disco eu queria, pedi que me desse um isqueiro Bic. Laranja ou roxo.
Glup blop flop blup, os beijos transubstanciados de mamãe pipocam na superfície virgem da polenta subindo do fundo da minha panela onírica se misturando ao blup blop glup flop dos beijos de Sílvia e abrocho os beiços sonhando. Meio sem querer acabei dando o troco. Ela me “traiu” com Augusto, devolvi a “traição” com nossa então empregada Nilceia. Nilceia era meu projeto de mulher infantil, 6 aos 8 anos, se tivesse cu para encarar uma alternativa amorosa não burguesa. Não precisa mais do que te dou, ela parecia querer dizer em seu mutismo abúlico. Preciso dum coração, eu queria enfatizar. Uma mulher que me explique as idiossincrasias de mamãe. Mães burguesas não facilitam esse tipo de coisa a sua prole, you know.
Já é outra manhã? Meus inpensamentos voam nas asas sem plumas das horas, meus dias voam nas asas decepadas fritas a passarinho que Soninha me traz no almoço. Olho os lençóis imundos, o buraco exposto no meio do colchão. Colchão ortopédico nos bons tempos, que Sílvia comprou numa dessas lojas especializadas em Pinheiros. Era um colchão rígido feito tábua, me sentia um faquir. É bom pra coluna, Sílvia decretava.
As lembranças viraram traumas indeletáveis e diante dessa calamidade todo o resto é pífio. Talvez tenhamos acabado assim porque havia outras interrogações entaladas que Sílvia não se permitiu expressar por se orgulhar de ser orgulhosa. Não há muita diferença entre escrever e assimilar a nojeira, amar e fazer polenta. Sílvia torceu a cara com asco de ter nascido, me chamou de bicho do mato e bye. Bicho do mato, sim. Por natureza e por opção. Uma fera inconformada com a própria ferocidade. Nas breves, brevíssimas folgas da ferocidade, uma oportunidade de contemplar meu essencial. Ai que nojo. Quando não fosse um dia em que nada me fosse essencial. Quer dizer, perguntei, quer dizer que tua aversão a mim ficou entalada na tua garganta desde que nos conhecemos e só extravasou quando você começou a dar para o Augusto? Até meus 15 anos eu também tinha asas de frango frito entaladas na minha garganta. Quão longa será esta nossa noite, meu amor. E quão curta terá sido quando abrir os olhos amanhã de ressaca tentando lembrar o que não aconteceu. Não, não quero deixar rastros neste mundo nesta minha passagem rumo ao inferno.
Acendo um cigarro, vou para a sala procurar minha garrafa, que é que vejo? Vejo os ballas, os steins, os amendoins, talvez de ontem, talvez do mês passado, vomitados em cima da mesinha de centro. Ainda não joguei fora essa mesinha de centro? Sílvia comprou naquela feira de móveis em São Bernardo a que me arrastou um dia depois de virarmos pombinhos. Tampo de vidro, perninhas anêmicas ligeiramente curvadas escorridas de licor visceral.
Cândida. Preciso desinfetar.
Dou uma pernada até o mercadinho em frente ao buteco do Lacerda para comprar cândida e quem é que encontro empacotando no caixa? Bidu. Meu cafuzo sobra de lixo cósmico. Pago a Nicinha, amiga da Soninha, que até outro dia trabalhava na farmácia do Nando e com quem já brochei várias vezes. Meu cafuzo me passa o saco com a cândida e duas latas de cerva sem gelo sem dar mostra de me reconhecer. Tem os olhos de eletricidade morta da falta de crack. Aproximo o rosto da orelha dele e cochicho se quer tomar uma em frente, agora em português. Ele faz que sim animado.
Saímos para a vasta, a vasta estepe entulhada de butecos entupidos de pinguços em algazarra e becos sem saída, recusando a mim e ao meu acompanhante subterfúgios convenientes, sonegando um analgésico. Meu inpensamentos se esvaem em cacos de cacos de cacos. Paro na beira do precipício da calçada, volto meus olhos moribundos para o meu cafuzo, sorte de azar o nosso. Somos seres aconectivos. Por uns minutos serei seu muso, pelo resto dos meus dias ele será minha cobaia. Não desconfia que está lidando c'um muso sem vocação para ser evocado, sem mote para ser amado, sei que estou lidando c'uma cobaia desempenhando sem saber seu papel de cobaia. Para sua felicidade de dois segundos suficientes para a pinga descer pela goela a engrenagem manca da vida irá funcionar por 2'' suficientes para a pinga lhe descer pela goela antes de enroscar de novo. Durante essa eternidade ele será e saberá. E eu o testemunharei. E ele me testemunhará. E seremos e saberemos. Por 2'' os cacos dos cacos dos cacos farão algum sentido e na cabeça dele sintonizarão uma vaga saudade de ter sido humano e na minha formarão algumas frases desorientadas de palavras toscas miseravelmente supérfluas.
Encostamos no fundo do balcão, ergo dois dedos para o Lacerda, 2 51, + 2'' de felicidade.
Noto que meu cafuzo faz menção de abrir a boca e renuncia ao esforço. Talvez uma comichão metafísica agônica dessas que nos leva a reclamar de que parece haver algo errado e a que estamos todos propensos? Talvez queira falar do tempo, de seu ofício de empacotar pasta de dente e bolacha maisena e omo e água sanitária e fubá para polenta, da deplorável situação política? Talvez conheça algumas palavras, talvez saiba que basta deixar a propriocepção trabalhar à sua revelia para que a comichão faça cócegas naquele algo e articule aquelas poucas palavras e mova seu maxilar e instigue seus lábios e ressuscite sua língua para nada. Sejamos simplesmente felizes, meu simples cafuzo.
Ergo dois dedos, + 2 51 para + 2''. Gosto do Lacerda porque ele jamais espicha as sobrancelhas espantando-se com “mais duas”. Sabe da importância de não haver fundo.
Vamos fingir que não temos língua? Nem dentro da boca, nem no cérebro. Vamos fingir que nunca queremos falar nada e, em nunca querendo falar nada, não precisamos da fala. Porque nunca pensamos nada. Somos apenas dois robôs mudos vagabundeando diante dum balcão empunhando um copo já vazio, esperando o próximo olhando os carros passando na rua. Não temos promessas a cumprir porque não nos prometemos nada e se nos prometêssemos ficaríamos decepcionados. E não as cumpriríamos mesmo se as tivéssemos feito — não vemos sentido em cumprir.
Ele mumunha falô-mermão e vai. (Que saudade. Não sei. Quero deter o maremoto de cacos para me lembrar. Não me lembro. Não me lembro nem mesmo do que estou tentando lembrar.)
A doce algaravia dentro do buteco sobe, sobe, sobe, estrila num buquê de tilitintins, paralisa meus inpensamentos, cai, cai, cai. O Lacerda e dona Jussara do outro lado do balcão tagarelam sobre abrir crediário, carnê, pagamento em cartório. Lacerda se diz de saco cheio. Cansou de encher a barriga de vagabundo. Que já perdeu a paciência. Acho que quero + 2''. Não vou fingir. Sempre finjo que enterro o que passou sob uma pá de caaal. Quero ver todas as línguas recolhidas, quero ver todas as línguas jazendo mortas dentro das bocas, todos os motivos sem motivo, todos os atos intomados. Quero ficar na minha. Tentei aprender. Desisti. Me diluí no meu tempo e no meu espaço, não tenho mais corpo nem voz. Preciso dar adeus a esta minha hipersensibilidade de garoto. A imensidão ilimitada desta prisão é tão pequena. Quero ficar aqui até o fim da tarde quando não haverá luzes para que possamos todos ver o luar. Aqui é o meu lugar, aqui me igualo aos meus. Sem eles não existo. Aqui não tenho livros, aqui não tenho planos, aqui não me servem minhas (inexistentes) qualidades. Sou o feliz proprietário dum sentido trágico da vida. Fim da noite, Sílvia vai dormir, pego meu Notas do subterrâneo pela enésima vez. Para que tantos escreveram tanto depois de Notas do subterrâneo? Almejo a ser um homem sem nome. Um homem sem vontades. Um homem sem necessidades. Quero a plenitude do vazio. Cansei de me vestir de lobo da estepe. Quando estávamos juntos fingia um relacionamento à la Bergman, ficava atento às reações que os seus (frios) feedbacks produziam em mim. E me punha à espera. Por mim esperaria pelo resto da vida. Com Sílvia ao meu lado nada me soava fora de lugar.
O Lacerda diz a dona Jussara que esta noite fará lua cheia. Dona Jussara olha para a tevê, eu olho para a rua, os bebuns em todos os bares olham para o fundo do copo.
Sílvia me perguntava quase todo dia o que eu esperava da vida, dela, de mim mesmo, eu ficava meio aflito procurando responder com algo que fizesse algum sentido mas acabava dando um chute sem muita direção. Onde você acha ideias como essas? ela queria saber. Então eu tentava uma piadinha para fazer ela rir com aqueles seus dentões de coelha deslumbrada e perdia o pique e ela se decepcionava. Não acredito que pude ir levando aqueles anos todos. Não vai dar, não vai dar. Ela cansou da minha gaucherie autocondescendente.
Estou enternecido sob este espírito de comunhão evocado pelos beijos da polenta, se um desconhecido me der a mão na esquina não estranharei. Preciso dum ladrão que me roube de mim mesmo. Me tornei tão útil quanto esta folha seca caída na sarjeta. Estou ficando cansado. Preciso voltar para ler mais uma vez o finzinho das Notas. Você quer mais que um homem que não busca reconhecimento? Houve um tempo em que era capaz de sentir um frio na barriga. Estava em boa situação. A polenta ficava puta de quente e vem de beijos cuspia seu cuspe incandescente no meu braço e nada tinha fim. Meu pai me queria qualquer profissão que desse grana e fosse invejada pelos vizinhos e parentes. Será que caras feito eu são normais? Espero estar extinto até amanhã a qualquer hora. Fecha os olhos para os riscos à frente, se livra do peso da precaução, danem-se as milhões de possibilidades que o recomeço encerra. Vrum! o pouco que ainda resta em pé vai desmoronando. Não vou mais pagar o preço. Chega de desperdiçar palavras. Chega de engolir caroços grandes demais para engolir. Peço só mais vinte segundos de palavrório sem fim sobre o que não estou bem certo. É mais que uma eternidade mas who cares? Vou voltando dentro da escuridão prateada. Me esqueci do que sinto e silencio. Onde posso tirar meu atestado de inutilidade? Sinceramente, lamento. No recomeço tudo é tão rosa. Em que porta devo entrar, em que ponto devo fazer o sinal? O maior problema de ser bicho do mato não é a solidão. O maior problema do lobo da estepe é a falta de referências emocionais. Será que saí errado? Posso falar do meu frio na barriga?
Não me importa estar condenado. Se eu fosse um gestor, desses que gerenciam equipes e seus infalíveis conflitos humanos, faria as médias que todos sabem fazer tão bem. Tudo depois de Sílvia é nada e não tenho bônus.
Snif. 51? Há tantos anos passei da minha fase de cachaça. Lá, me manda um balla sem gelo.
Provo. Preciso beber a mim mesmo. Sou incapaz de fugir do meu círculo de fogo. Estou em estado senoidal. Quero desaparecer antes de articular uma resposta. Não vou me despedir com um gran finale. Explodam a lua.
A vida é uma sucessão de milagres? Será um milagre a inefável bola que de dia esparge luz sobre minha cabeça e meus ombros revezando guarda com a inexplicável esfera chamuscada de prata que durante a noite cria as sombras de que preciso e de que não busco mais fugir? Milagres como a angelical batucada dos pingos da chuva que me cerca, caindo talvez do céu, para criar a minha toada. Quantos pequenos grandes milagres, ora a me comover, ora a me dar inescapável sono.
Vou ficar aqui parado no escuro sem esperar nada. A escuridão é o único milagre que espero. Se vierem outros, não vou aceitar. Nem recusar. Vou ficar aqui parado esperando a transição.
Pelo escuro da minha vida passaram amigos, gatos, inimigos, carrascos, prometidos, ratos. Teria sido possível conseguir mais que isso? Não logrei senão vislumbrar os rostos 3x4 faiscando suas dentaduras brilhantes que compõem o cemitério da minha memória. Não sou afeito à promiscuidade. Não reivindico o direito de devassar a escuridão.
Criança, me ensinaram que a devassa era minha obrigação e levei décadas para recusar a lição. Não nasci para roubar, apesar das fantásticas ocasiões que me ofertaram, embora nascido fervoroso ladrão.
A entrada estava livre mas preferi recusar. Eles seguem sua missão de figurar em listas, frequentar clubes, comunhar, deixar pegadas indeléveis. Não pretendo ficar mais que o tempo necessário para não deixar nada.
Vou ficar aqui no escuro assistindo o fluxo infernal do mar sujo sob a lua cheia. Amanhã é primavera. Talvez chova. Um mero pingo de chuva me atordoa.

Será um longo parêntese.