Toda a juventude
acaba na praia gloriosa, à beira d’água, ali onde as mulheres parecem enfim
livres, onde estão tão belas, que sequer necessitam ainda a mentira dos nossos
sonhos.
Louis-Ferdinand Céline
A náusea
O cinismo me aturde. Me dou conta de que tenho vivido nos últimos
trinta anos sob torpor. Não um desses estados intransferivelmente pessoais em
que caímos sem mais nem menos desde quando tomamos consciência do mundo e que
aos poucos vamos aprendendo a suportar, até o aceitarmos como parte da nossa
natureza à medida que o tempo nos faz amadurecer, no meu caso, na marra. É um
aturdimento, como todos os aturdimentos, imperceptível. Sendo assintomático,
quem me olha, mesmo de viés, pensa que estou apenas distraído, matutando essas
encucações que me habituei a matutar.
Então, nauseado de assombro, me dei conta de que o cinismo é tão
natural nos seres humanos quanto o são as nuvens no céu e o oxigênio no ar.
Ainda há pouco olhava o mundo sob uma escala classificatória. Minha escala
começava lá do alto com valores bons como honestidade, fraternidade, espírito
de luta, esforço pelo bem comum. E terminava aqui embaixo com valores ruins
como safadeza, perfídia, deslealdade, patifaria. De repente percebo que estava
grosseiramente errada — essa é a escala dos tolos, dos que trocam as
bolas engolindo o mal camuflado em poder, que aceitamos inermes, vencidos,
lassos e covardes. Pior, saco com desgosto que até há pouco minha visão do
mundo, da vida, dos seres humanos, da história e dos fatos era, por Alá,
religiosa. A religiosidade cega, de que sempre debochei desde criança, era meu
refúgio no mundo dos adultos e eu não sabia. O insight me dá inescapável
sensação enojada de mim mesmo.
Não sei, nunca soube, aceitar a baixeza como apenas mais uma
verdade intrínseca da natureza humana. Nós românticos temos essa mania
neurótica de forjar fantasias para amenizar a feiúra que nos cerca. Quando o
desvario pega fundo a ponto de nos deixar absolutamente cegos, como é o meu
caso, olhamos as pessoas e, numa tentativa de fazer com que pareçam menos grotescas,
as imaginamos vestidas com nossas doces, diáfanas, sedosas alegorias.
Meus dias são feitos de vislumbres. Do início ao fim da jornada
vou atinando, através de vagos filtros sensoriais, com os fundamentos de que
somos feitos. Filósofo embriagado, identifico as verdades e, solerte, as
transfiguro em nome dos meus mais egoístas interesses, obtuso, vesgo
contrabandista de mim mesmo.
O cinismo é minha dolorosa evidência interior de que não podemos
ser outra coisa que não benignamente esquizoides. Sim, agora vejo tudo com
clareza: devemos ter duas ou mais dimensões. Se não for ridiculamente tolo, se
não quiser passar por degenerescência ambulante estapafúrdia, tenho de assumir
minha ambiguidade ética. Nesta época em que todos precisamos estar atentos às
inexoráveis transformações evolutivas do ser, há que incorporar “lados” antes
insuspeitos que vicejavam feito aliens em nosso âmago. Temos de assumir nosso
lado andrógino, aceitar nosso lado tribal, condescender com nosso lado escuro.
Sim, somos multifacetados. Não complicados, apenas complexos, o que pode ser
reconhecido quando eliminamos do olhar o viés moral. O cinismo por fim me
demonstra inequivocamente que meu sonho com o Bem — sonho básico, que pensava
estar indissoluvelmente mesclado à minha Alma — era apenas isso: sonho. Prova
também que enfim posso deixar de me martirizar por ser, mais que vacilante,
dúbio — agora sei que dentro de mim habitam eus que pensam o que lhes dá na
telha sem maiores preocupações uns com os outros. Sou um ambivalente ocupado por
seres que na maior parte do tempo me levam em direções diferentes, às vezes
antagônicas. Por isso mesmo, agora me sinto mais solto. E livre.
Queria ser irônico, invocar meu pai, dizer, pai, quanta perda de
tempo e saúde você ter querido me ensinar o certo e o errado. Que tremendo
simplório, ter escolhido nascer numa época ingênua, chegando já sem lugar neste
mundo em que os adultos sequer piscam mais na presença de cafés-com-leite.
Pisamos e pisaremos eternamente descalços nos cacos de vidro vindos das garrafas
de inebriante néctar que eles arremessam em nosso caminho. Nossos pés sangram,
olhamos atônitos para o chão, eles dão contagiantes gargalhadas nos vendo
atônitos. Não é um mundo novo e sim um paraíso leve e isento de injunções
éticas para nós inédito. Existe há cinco mil anos, a idade da civilização. É o
mundo em que o esperto engole o bocó, pai. Neste para nós inusitado changrilá
sob um dissimulado império da lei da seleção natural, nossos senhores, movidos
a cinismo, não nos devoram — apenas nos digerem para nos regurgitar escravos.
Somos mais úteis vivos.
Em meio a estes dolorosos insights, a névoa que encobre meu
espelho vai se descortinando. Aos poucos identifico os novos homens e mulheres
em que haveremos de nos converter à luz dos recentes, penosos aprendizados. Em
breve, quando nos acharmos encurralados num dos muitos becos sem saída em que
vivemos nos metendo, ventosas salvadoras nascerão em nossas mãos para
escaparmos subindo paredes. Quando, desolados, vasculharmos a mente em busca
duma saída e não encontrarmos senão pensamentos inutilmente vazios, novas
cabeças, alívio!, brotarão de nossos ombros, cabeças de cérebros rejuvenescidos
e ágeis, equipadas taticamente com algumas dezenas de olhos alertas, poderosos,
faiscantes de energia redentora. A cada nova enrascada — que, americanamente,
chamaremos “situação” —, veremos nascer, embevecidos, um novo lado em nós
mesmos, um lado que, embora apenas parte de todos os nossos lados, será
paradoxalmente unívoco, apto a expor-se estrategicamente dependendo das
imposições imediatas do meio ambiente. Quanto aos pés, continuaremos a ter os
dois de sempre. Mas — se você me permitir, enfim, uma decepcionante conjunção —
agora cada qual voltado para um lado. Assim — se você cordialmente permitir que
eu o tome pela mão e o conduza —, evoluiremos parados ao sabor desses antigos
novos amos que ditam nossos destinos. Seremos, enfim, meros sobreviventes.