Amorokê na vila - Capítulo 033

Toda a juventude acaba na praia gloriosa, à beira d’água, ali onde as mulheres parecem enfim livres, onde estão tão belas, que sequer necessitam ainda a mentira dos nossos sonhos.

Louis-Ferdinand Céline


A náusea 
O cinismo me aturde. Me dou conta de que tenho vivido nos últimos trinta anos sob torpor. Não um desses estados intransferivelmente pessoais em que caímos sem mais nem menos desde quando tomamos consciência do mundo e que aos poucos vamos aprendendo a suportar, até o aceitarmos como parte da nossa natureza à medida que o tempo nos faz amadurecer, no meu caso, na marra. É um aturdimento, como todos os aturdimentos, imperceptível. Sendo assintomático, quem me olha, mesmo de viés, pensa que estou apenas distraído, matutando essas encucações que me habituei a matutar. 
Então, nauseado de assombro, me dei conta de que o cinismo é tão natural nos seres humanos quanto o são as nuvens no céu e o oxigênio no ar. Ainda há pouco olhava o mundo sob uma escala classificatória. Minha escala começava lá do alto com valores bons como honestidade, fraternidade, espírito de luta, esforço pelo bem comum. E terminava aqui embaixo com valores ruins como safadeza, perfídia, deslealdade, patifaria. De repente percebo que estava grosseiramente errada — essa  é a escala dos tolos, dos que trocam as bolas engolindo o mal camuflado em poder, que aceitamos inermes, vencidos, lassos e covardes. Pior, saco com desgosto que até há pouco minha visão do mundo, da vida, dos seres humanos, da história e dos fatos era, por Alá, religiosa. A religiosidade cega, de que sempre debochei desde criança, era meu refúgio no mundo dos adultos e eu não sabia. O insight me dá inescapável sensação enojada de mim mesmo. 
Não sei, nunca soube, aceitar a baixeza como apenas mais uma verdade intrínseca da natureza humana. Nós românticos temos essa mania neurótica de forjar fantasias para amenizar a feiúra que nos cerca. Quando o desvario pega fundo a ponto de nos deixar absolutamente cegos, como é o meu caso, olhamos as pessoas e, numa tentativa de fazer com que pareçam menos grotescas, as imaginamos vestidas com nossas doces, diáfanas, sedosas alegorias. 
Meus dias são feitos de vislumbres. Do início ao fim da jornada vou atinando, através de vagos filtros sensoriais, com os fundamentos de que somos feitos. Filósofo embriagado, identifico as verdades e, solerte, as transfiguro em nome dos meus mais egoístas interesses, obtuso, vesgo contrabandista de mim mesmo. 
O cinismo é minha dolorosa evidência interior de que não podemos ser outra coisa que não benignamente esquizoides. Sim, agora vejo tudo com clareza: devemos ter duas ou mais dimensões. Se não for ridiculamente tolo, se não quiser passar por degenerescência ambulante estapafúrdia, tenho de assumir minha ambiguidade ética. Nesta época em que todos precisamos estar atentos às inexoráveis transformações evolutivas do ser, há que incorporar “lados” antes insuspeitos que vicejavam feito aliens em nosso âmago. Temos de assumir nosso lado andrógino, aceitar nosso lado tribal, condescender com nosso lado escuro. Sim, somos multifacetados. Não complicados, apenas complexos, o que pode ser reconhecido quando eliminamos do olhar o viés moral. O cinismo por fim me demonstra inequivocamente que meu sonho com o Bem — sonho básico, que pensava estar indissoluvelmente mesclado à minha Alma — era apenas isso: sonho. Prova também que enfim posso deixar de me martirizar por ser, mais que vacilante, dúbio — agora sei que dentro de mim habitam eus que pensam o que lhes dá na telha sem maiores preocupações uns com os outros. Sou um ambivalente ocupado por seres que na maior parte do tempo me levam em direções diferentes, às vezes antagônicas. Por isso mesmo, agora me sinto mais solto. E livre. 
Queria ser irônico, invocar meu pai, dizer, pai, quanta perda de tempo e saúde você ter querido me ensinar o certo e o errado. Que tremendo simplório, ter escolhido nascer numa época ingênua, chegando já sem lugar neste mundo em que os adultos sequer piscam mais na presença de cafés-com-leite. Pisamos e pisaremos eternamente descalços nos cacos de vidro vindos das garrafas de inebriante néctar que eles arremessam em nosso caminho. Nossos pés sangram, olhamos atônitos para o chão, eles dão contagiantes gargalhadas nos vendo atônitos. Não é um mundo novo e sim um paraíso leve e isento de injunções éticas para nós inédito. Existe há cinco mil anos, a idade da civilização. É o mundo em que o esperto engole o bocó, pai. Neste para nós inusitado changrilá sob um dissimulado império da lei da seleção natural, nossos senhores, movidos a cinismo, não nos devoram — apenas nos digerem para nos regurgitar escravos. Somos mais úteis vivos. 
Em meio a estes dolorosos insights, a névoa que encobre meu espelho vai se descortinando. Aos poucos identifico os novos homens e mulheres em que haveremos de nos converter à luz dos recentes, penosos aprendizados. Em breve, quando nos acharmos encurralados num dos muitos becos sem saída em que vivemos nos metendo, ventosas salvadoras nascerão em nossas mãos para escaparmos subindo paredes. Quando, desolados, vasculharmos a mente em busca duma saída e não encontrarmos senão pensamentos inutilmente vazios, novas cabeças, alívio!, brotarão de nossos ombros, cabeças de cérebros rejuvenescidos e ágeis, equipadas taticamente com algumas dezenas de olhos alertas, poderosos, faiscantes de energia redentora. A cada nova enrascada — que, americanamente, chamaremos “situação” —, veremos nascer, embevecidos, um novo lado em nós mesmos, um lado que, embora apenas parte de todos os nossos lados, será paradoxalmente unívoco, apto a expor-se estrategicamente dependendo das imposições imediatas do meio ambiente. Quanto aos pés, continuaremos a ter os dois de sempre. Mas — se você me permitir, enfim, uma decepcionante conjunção — agora cada qual voltado para um lado. Assim — se você cordialmente permitir que eu o tome pela mão e o conduza —, evoluiremos parados ao sabor desses antigos novos amos que ditam nossos destinos. Seremos, enfim, meros sobreviventes.