Estou tentando escrever desde domingo
passado. Cinco dias. Só de pensar me dá dor de barriga e meio que entro em
pânico. Fantasio que nunca mais serei capaz de escrever um "a"
sequer. Então me lembro de que já passei tantas vezes por esse angu e fico
dizendo a mim mesmo, é fase, é passageiro, é temporário, é o caralho.
O maior medo é descobrir que escrevo por
escrever. Isto é, não impulsionado por uma necessidade íntima ou como reação a
uma experiência. E o medo é tanto, que NUNCA penso nisso. Há muito tempo achava
que a hora de pensar viria assim naturalmente e eu me veria obrigado a pegar o
bicho à unha, sem ter aonde escapar. Hoje sei que não é tão FÁCIL.
É TÃO fácil identificar a escrita
automática nos outros. E não só em escritores amadores. Escrevi muito a
respeito há uns cinco, seis anos, imaginava que tivesse resolvido o assunto
para fins de consumo interno. É com desgosto que admito que o problema não tem
solução.
O "traquejo" é a desgraça.
Lembra do traquejo? Há anos não leio em
lugar algum. Parece que não usa mais.
Nos tempos em que se usava
ordinariamente, significava "facilidade ou habilidade adquirida com o
uso". Hoje aprendo que pode se tornar um flagelo para quem aspira a
mostrar o que sente, MUITO, MUITO além do que simplesmente sabe fazer ou faz
por obrigação.
É mais ou menos sempre — repito, é mais
ou menos sempre — num momento como este que me ocorre pensar e escrever sobre
um dos meus temas pessoais prediletos — o mecanicismo.
Sem pretender fazer piada, o mais duro é
não tocar o assunto mecanicamente.
Como já escrevi mil vezes em outras mil
vezes, todo escritor, inclusive o grande, está irrecorrivelmente circunscrito
ao seu próprio mundo, feito de suas próprias experiências, e dele é incapaz de
fugir. Exatamente por isso, todo escritor — ou artista — cedo ou tarde se
repete. Ninguém tem a capacidade de englobar toda a experiência humana numa só
experiência. Shakespeare e Goethe talvez tenham apenas chegado perto.
Um dos grandes inimigos do criador é a
capacidade de emular — e é precisamente aí que ele se aliena da capacidade de
criar, na acepção original e única do termo.
Temos um controle apenas ilusório sobre
nossas capacidades e habilidades de perceber as coisas. Ou, pra ficar na arte,
de perceber as coisas duma maneira nova, seja pros outros, seja,
principalmente, pra nós mesmos.
A realidade exige de nós uma atenção
altamente exaustiva. Imagino que seja esta a razão de termos flashes e
vislumbres e insights extremamente fugidios do mundo. São fagulhas cujo brilho
nos encanta por um átimo e que tentamos reter e converter em EXPERIÊNCIA para
poder traduzir em arte em algum momento no futuro, mas fogem da nossa apreensão
como fogo-fátuo que são.
Nesse sentido, penso que tenho sido
honesto comigo mesmo.
Quer dizer, reconheço que não sou
Shakespeare ou Goethe ou Proust e que MEU TEMA não é esmiuçar a realidade dos
homens e sim me colocar de antemão como mero, como simples, como humilde
aspirante à chance de dar uma fugaz espiada no GRANDE SISTEMA.
A empreitada não é mole. À medida que
avanço, vou cometendo abusos e incorrendo em injustiças e até mesmo pecando por
um dos crimes que não perdoo a ninguém — a leviandade. Sou e tenho sido leviano
muito mais vezes do que me permitiria se pudesse encontrar outra saída para
minhas próprias pequenezas.
Escritores e poetas são como rojões —
atingem as alturas, eclodem em esplendor, deslumbram, aturdem e caem apagados.
A história da literatura está forrada de exemplos dos grandes que não se
conformam com o destino do brilho efêmero. Nada mais humano que o sonho da
eternidade.
Talvez seja por isso que certos pequenos
se contentem em deslumbrar os cegos.