Prezada leitora, terceiro round e knockout

[infelizmente segui vivo e, responsável que sou, não me furtei ao round final]

O escritor cumpre estranha empreitada - a de se exibir feito frívolo pavão de penas murchas e desbotadas, arrotando um conhecimento que apenas delira ter, masoquista a chamar a atenção de terceiros para os próprios defeitos até chafurdar no ridículo, desempenhando triste papel em que até o vulgo, até o néscio que não faz a mais remota ideia do que seja literatura, identifica como medíocre e na primeira conversa de balcão de bar com o compadre beberrão haverá de tascar-lhe - ao autor, não ao compadre beberrão - a alcunha de "escrevinhador".
E já que falamos da desculpa, que, como dissemos anteriormente, no mais das vezes recebe o justo apodo de esfarrapada, já de cara eliminando qualquer resquício de dignidade que possa ter restado do pífio embate com a palavra, o que em última instância é a razão por que tantos romances, contos, crônicas, críticas, relatos e comentários - nesta ordem - não passam dum pé no saco (padecimento em que mesmo mulheres podem se incluir se tomarem a expressão, por assim dizer, metaforicamente), não podemos nos furtar a abordar o pretexto.
Ah, quão bela é a contraposição desculpa-pretexto! - quiçá um dos mais interessantes fenômenos da literatura não só contemporânea mas também de todos os tempos. Pois com o pretexto tudo volta a mudar outra vez de figura. No que a desculpa tem de esfarrapada, andrajosa e - por que não dizer? - malcheirosa, encardida, desagradável e ensebada, o pretexto tem de nobre, garboso, distinto, sacro e casto. Com o pretexto, até chatérrimas enumerações de adjetivos pedantemente excessivos, supérfluos e fosforejantes podem parecer ser mais do que reles cascata, frango depenado em trajes de graúna real (se não existe tal ave, lancemos mais outra vez mão do coitado do pavão). Ao contrário da desculpa esfarrapada, em que todo papo é furado, nem toda conversa é mole com relação ao pretexto.
Certo, nem toda conversa é mole - mas pode ser. Tudo vai depender, é bom que se diga, do infeliz.
(Para quem já se esqueceu ou iniciou a presente leitura a partir deste parágrafo - sabem como é, certas leitoras há que morrem de preguiça de enfrentar preâmbulos e só têm olhos para o ponto principal -, peço que voltem ao começo e padeçam tudo de novo.)
A devota leitora já deve ter ouvido falar - ou quem sabe até mesmo lido em alguma revista literária ou na telinha do seu computador - de romances, contos e outros gêneros embasados em pretextos que pareciam uma maravilha - tocavam diretamente em nossos corações, nos incitando a ver em nossas experiências individuais o que elas, experiências individuais, têm de complexo e denso. Certos gênios literários logram mesmo o advento da aceitação do desafio da reflexão teórica e da busca do respaldo empírico que a alguns de nós nos leva ao hospital em virtude dum cálculo biliar malassimilado, assim permitindo que nos identifiquemos a nós mesmos nas palavras dum estranho que não temos a menor ideia quem seja, conduzindo-nos à beira das lágrimas.
Em suma, pretextos há que são os melhores do mercado.
Pois bem. Tendo à disposição um material extraordinário desse tipo, um escritor genuíno seria capaz de produzir uma obra-prima. Mas, e se a pobrezinha da leitora, por um imenso azar, cair nas mãos daquele repelente escrevinhador de que falávamos lá trás? Nesse caso, bem, tudo se põe a perder, obviamente. O desgraçado é bem capaz de meter os pés pelas mãos. E se for de fato um desastrado, não duvido que até cometa um vice-versa e patati patatá!
Para corroborar o que digo, cito um exemplo. Ainda ontem, lia - note, desconcertada leitora, o sutilérrimo emprego do pretérito imperfeito e do eclipse do sujeito, dando-lhe subsídios e mesmo um pano de fundo como mecanismo de legitimação que ultrapassa o alcance da dicotomia forma-fundo - ainda ontem, sentado em minha poltrona na sala diante do aparelho de tevê desligado, lia, repito, elaborada, recôndita, peculiar, transoceânica crítica de autoria de famigerado professor da USP sobre a cooptação e - por que não dizer? - resgate mesmo da obra de Machado de Assis como repercussão da primeira bateria da Mangueira no carnaval que se aproxima. Estou ali lendo a lapidar e bem-estruturada análise teórica, quando lá por parágrafos tantos - talvez no quinto ou sexto, não recordo direito - o quantativamente articulado educador perdeu aquele delgadíssimo fio que essa gente vive perdendo e... tã-tã-tã-tã! - o que fez quando pensou tê-lo achado? Tacou, bem no meio do saboroso e arcaizante texto, sem dó nem etc, um fio do "novelo".
E não cisme a leitosinha leitorinha c'um suposto intuito sub-repticiamente contrabandeado (!) nas entrelinhas desta crônica. Tem gente que apela ao mais vil recurso na malograda ânsia de isso mesmo. O autor só pede um cúmplice, por uma noite que seja. Amanhã cedo retomará sua perambulação infrutífera no úmido, fétido e ao mesmo tempo choco interior de si mesmo, a fitar desmoralizado e gemebundo as rachaduras que duvida se estão no teto ou em sua alma.

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