O segredo da boa escrita é o pretexto.
Por que esse sujeito escreveu isto? pergunta-se a curiosa leitora. Mas então
tudo já foi por água abaixo, pois em fazendo a pergunta mata a charada.
Escritor que dá no couro não deixa que
lhem percebam o pretexto. A leitora lê, empolga-se, comove-se, distrai-se,
chora, ri. Quando termina, está assoberbada pelo emprego justo e judicioso das
palavras. A amostra de verdade com que teve o privilégio de entrar em contato a
elevou a um estado de deleite e fruição, como gostam de dizer os hermeneutas e
os eruditos. Num quase êxtase, não atenta para o pretexto que, como tudo que é
interessante nesta vida, está por trás. E sem saber chega feliz à conclusão de que
eis um autor dotado de, com o perdão da palavra, conteúdo.
Esse final feliz, porém, só ocorre com
escritores verdadeiramente escritores. Quando não é o caso, a coisa toda, com
perdão do clichê, muda de figura. E não é a única coisa que muda - muda também
a boa-vontade apriorística da melindrosa leitora, que se, além de melindrosa
for honesta, se meteu a ler desarmada de más intenções.
Nem sempre, nevertheless. É fato que
entre essas senhoras dotadas de fervor estão infiltradas muitas
espíritos-de-porco (ou não sei se devo dizer "porca", ignoro se essa
pitoresca expressão tem flexão de gênero). São as que leem apenas para depois
baixar o sarrafo no que leu e, ai de mim, no pobre do autor. Para rabugentas
que tais não há bons escritores, mas tão-somente amadores atordoados pela
veleidade de se ombrear aos camões (em minúscula, sim senhorita) do augusto e
áureo panteão literário.
Não tratávamos de Camões, todavia, antes
de perdermos o fio da meada. Nosso assunto, era, sim, o pretexto que nós,
pobres escrevinhadores, precisamos forjar para escrever.
Quando o cabra é escritor apenas em sua
própria imaginação e um amontoador de palavras na cruelíssima dimensão da
realidade, aquele pretexto que, dizíamos, usa para entreter e ludibriar - no
bom sentido, apresso-me a esclarecer antes que me acusem de maledicência,
garantindo que nenhum dos sentidos que a leitora encontrará nesta crônica é
mau, pelo menos não de todo - pois bem, nas mãos dum reles escriba aquele
pretexto a leitora enxergará apenas uma desculpa. E como até os passarinhos em
sua aérea e alada sapiência sabem, toda desculpa é tão esfarrapada quanto a
ética lulopetista.
Não, leitora castíssima, não abane a
cabeça. Antes que me acuse de embromador, estou, admito, ciente de não haver na
Última Flor do Lácio dupla de adjetivo-substantivo mais manjada do que esta.
Uma desculpa, bem o sei, não importa quão justificada, não pode ser rota,
maltrapilha, andrajosa e qualificativos que tais. Se quiser valer no duro, tem
de ser aquela palavrinha já mais batida que a carteira do contribuinte
brasileiro por Lula e seus apóstolos. Assim como sei que uma disputa não haverá
de ser outra coisa senão encarnecida, um toque, de otimismo e as eras, bem, as
eras só podem ser priscas. E não nos esqueçamos de que as obras-primas só podem
ser verdadeiras, genuínas e autênticas.
Tão logo manja a desculpa engendrada, não
enxergará a atenta leitora senão uma sucessão de períodos, com perdão da
aliteração, insossos e bisonhamente alinhavados? E o autor? Bem, jaz mais que
claro que o infeliz teria se saído muito melhor se tivesse mantido a compostura
em vez de tentar bancar o espertalhão. O problema é que muitas vezes o
desgraçado não almeja outro propósito senão o de fazer papel de bobo. Arre!
certamente desdenhará risonhamente a leitora incrédula de que possam existir
sujeitos maluquinhos a ponto de se expor voluntariamente ao ridículo. Não pode
ser! emendará, tampando, com dedinhos de cutículas aparadas e unhas esmaltadas,
os lábios semiabertos e afunilados sobre o queixo caído e ao mesmo tempo
estatelando os olhos, num típico gesto de quem tenta conter dentro do peito um
palavrão mais cabeludo e expressivo.
Deveras. Aos olhinhos pragmáticos da
inocente leitora é incrível que exista no mundo alguém disposto a meter-se tola
e deliberadamente em labirintos dos quais, sabia de antemão, a saída não
haveria de enxergar. Sendo um infeliz neuroticamente devotado a se meter
debaixo das luzes da ribalta literária, foi-se aventurar por um caminho que a
princípio parecia margeado de flores e ornado de regatos, imaginando-se
protagonista dos Lieder do Winterreise pelos quais visualizava zanzando
indolente sob a trilha sonora de canários e pintassilgos, se os houvera na
Germânia de antanho. Só que, mal avançou os primeiros passinhos, o atrevido de
cara percebeu tratar-se dum horrendo beco sem saída guardado por um exército
das mais concretas gralhas e urubus.
Afinal, para que todo esse trabalho? a
preocupada leitorazinha haverá outra vez de perguntar-se. O miserável teria
feito muito melhor ficando bem quietinho no seu canto. Contristado, sem dúvida.
Mais: terrivelmente frustrado com a própria incompetência. Ou ainda pior:
angustiado por se descobrir um (ar)rematado poltrão. Mas ter-se-ia preservado lá
em seu cantinho mesmo assim. Para a imensa maioria dos mamíferos bípedes que
povoam o planeta, ser precavido é a maior, a mais vantajosa, a mais conveniente
das virtudes. Há mesmo certas regiões do mundo em que, por paradoxal que possa
parecer, não há proeza maior que admitir as próprias limitações Em geral, os zés-ninguém não querem outra
coisa senão desaparecer no meio da multidão. No linguajar do vulgo, dá-se a
isso o nome de prudência.
Só nos cabe, só nos resta orar (a quem?
Deus meu?) que nosso pobre amigo, na proverbial e zombeteira esquizofrenia com
que tenta driblar e afastar pela linha lateral os revezes da existência, não esteja esperando colher a valentia quando
semeia sua gorducha escrevinhação sob oceânica enxurrada de filosofice.
[continua
amanhã, se ainda estiver deploravelmente vivo]
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