O poema perdido


Falando em poema perdido, ontem à noite desliguei fatigado ao extremo o computador, fui (fui? não estou bem certo; para variar, estava sonâmbulo) para o alpendre aqui de casa, peguei (será mesmo?) uma Bic e um maço de sulfite e enchi 2 ou 3 folhas com versos desvairados nesta minha letra miúda de mulher no cio. Isso é tudo que me lembro do episódio. Hoje acordei cedo, como sempre, e fui ao alpendre pegar as folhas para passar no computador, só achei a primeira. Cadê a(s) outra(s)?

Olhei no chão, verifiquei debaixo duns livros na mesa, espiei dentro do aquário, vasculhei a casa, o escritório, revirei tudo que vi pela frente, fucei até o edredom da Zezeí, minha pincher/chiuaua, lhufas. 


São 10:29. Já li mil vezes a primeira folha, tentando reconstituir a(s) outra(s). Debalde. Não tenho a mais ínfima ideia de como continuar. É bem-feito para mim. Isso que dá escrever em transe -- o santo leva tudo quando vai embora. Se a Soninha tivesse passado aqui em casa ontem, eu pensaria que me surrupiou a porcaria enquanto me dava um daqueles seus beijinhos na ponta do meu nariz. Ladra. Para começo de conversa, não escrevi para ela. Acho. Ou ela pensa que não tenho outras (coisas) em que me inspirar?

Se eu fosse o Verissimo, fazia uma cronicazinha medíocre: O poema perdido. Não que o Verissimo seja exatamente medíocre, mas já vem escrevendo na banguela há décadas. O problema do escritor profissional é que tem de bater ponto e vira burocrata.

Sabia que o Pessoa fez O guardador em 40 minutinhos, em pé diante da lareira, numa só golfada? Franz escreveu A meta em 3 semanas. Não que esteja tentando me ombrear aos gênios, evidentemente. Mas não deixam de ser referências.

O poema perdido

Zé era um reles cachaceiro. Reles, sim, mas perdido de amores por Zinha. Tão perdido, que um dia sentiu algo que nunca sentira antes e empalideceu e teve tremedeira e ficou zonzo e de pernas moles e arrotou, além de outras manifestações fisiológicas menos nobres e dispensáveis.

Em seu surto, pegou uma maço de folhas e uma caneta e desembestou a garatujar, embora fosse um pinguço vagabundo que em sua confusão mental confundia espasmos etílicos com poesia.

Assim que preencheu folhas e mais folhas dos mais loucos versos, limpou a gosma que lhe escorria pela barba e desmaiou. Ao acordar, não sabia onde estava nem que dia era nem seu próprio nome nem o número de sua carteira de reservista. Mas sabia, sabia com toda certeza, que tinha escrito o maior poema de todos os tempos.

Foi olhar na mesa da cozinha, cadê? As folhas tinham sumido. Ah, tentou se tranquilizar, devo ter guardado na gaveta do guarda-comida.

Foi lá: nada.

Zé se pôs a procurar afoito em cada canto. O poema evaporou como se fora manguaça do mais alto teor de pureza! ganiu o desesperado e esquecido pau-d'água. Então foi tomado da mais funda angústia que já enegreceu a alma dum homem e caiu no meio da sala mortinho-pereira-da-silva.

Horas depois sua tia passou em sua casa pra pedir uns tomates emprestados como fazia todos os dias quando ia chegando a hora do almoço e deu com o miserável já em rigor mortis. Na mesinha de centro-esquerda tia Nilcéia avistou um maço de folhas e foi assuntar, bisbilhoteira que era. A primeira folha trazia escrito uma só frase na letrinha miúda de fêmea no cio de seu sobrinho Zé: "O poema perdido". As demais folhas estavam em branco.

"Ai que lindinho!" Nilcéia exclamou. (Ou acho que exclamou, não estou certo se a Nilcéia era dada a esse tipo de faniquito. E a esta altura do dia e com esta garrafa vazia à minha frente, não estou nem jamais estarei certo do que quer que seja.)

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