Predestinada espécie


No início -- quando? exatamente não sei; seguramente neste século --, será assim: você aperta o botãozinho no controle para desligar a tevê e a tevê desliga e torna a ligar instantaneamente.

Algum tempo depois -- quanto? bem, imagino que não mais que alguns dias --, você aperta o tal botãozinho e a tevê se recusa a desligar. Você é obrigado a desconectar a tomada.

Na manhã seguinte -- agora as coisas vão ficando finalmente previsíveis como os boletins do tempo --, você acorda com alguém falando no quarto e pula da cama assustado. Sim, é a tevê. Você se levanta e vai espiar atrás do suporte. A tomada continua desconectada. Mas uau! como é que o aparelho está ligado? Terá uma bateria interna que você desconhecia?

Então você aperta o botãozinho e... nada. Quer dizer, nada, não -- em vez de apagar, a miserável aumenta o volume.

Você mete o dedo no controle do som, empurrando o desgraçado para o zero. O alto-falante berra esganiçado, aparentemente lhe passando uma descompostura.

O volume vai crescendo. Você vai vendo sua paciência se esgotar. Então enfia um indicador em cada ouvido. A bicha berra mais alto. Você torce os dedos dentro das orelhas. A bicha guincha mais alto!

À margem do desvario, você agarra a monstrenga com os dois braços e a atira pela janela. Pois é, um prejuízo e tanto. Cristal líquido. Uma belezura. Lhe custou quatro meses de trabalho nas Casas Bahia. A visão do carnê das prestações lhe martela o cérebro. Mesmo contra a vontade, você se debruça no para-peito e dá uma espiada lá fora -- quer se despedir da disgramada.

Mas cadê a porra?! 

Você escuta a voz duma apresentadora às suas costas. Não, são duas vozes. Agora, três. As vozes se sobrepõem. Brigam entre si, disputando seus ouvidos. É como se vários canais estivessem sintonizados ao mesmo tempo. 

Você continua a apreciar o ponto no chão do quintal onde a tevê deveria jazer estatelada. Sente o rosto empalider mais e mais. E mais. Gira nos calcanhares.

O monstro deu cria. Está rodeado de várias telas menores. De dentro delas nascem controlinhos. Não. Controlões!

Cada cria, por sua vez, bidu! dá cria.

Os aparelhos maiores latem, vociferam, troam. Os menores gemem, ganem e zunem.

Num átimo de lucidez, você tenta correr para a porta. Tarde demais. Está cercado.

 





Nenhum comentário:

Postar um comentário