Eleição

Ah, a bem-aventurança de não ter dúvidas. Nenhuma quanto a candidatos a presidente da república, quanto a captar a mensagem certa dentre as bilhões que recebemos a cada segundo, quanto a nenhum dos frívolos enigmas deste mundinho besta.

É a maior sorte que pode almejar na vida o homem ou a mulher que anda distraidamente à beira dos precípios cotidianos e sabe exatamente onde apoiar os pés e prender os dedos. (Pois cada um desses pressurosos seres em interminável vai-e-vém atrás de suas lidas cotidianas sabem que vivem à beira de precipícios, não sabem?)

Não? Pois então, outra sorte deles. Quanto a mim graças a esse ente fenomenal que suspostamente está em todos os lugares , a mim não me coube tamanha dúvida, digo, dádiva.

Como é de conhecimento geral, tenho poucas e parcas certezas. Pensando bem, não estou certo de coisa alguma sobre coisa nenhuma. Não que tenha feito tal descoberta por mim mesmo. Infelizmente não nasci com bastante talento para tal proeza. Jamais, uma vez que fosse, descobri algo digno de nota. Disso tenho certeza.

Por exemplo, um caso ocorrido recentemente para ser mais preciso, algumas semanas atrás – c'um vizinho (rapaz que conheço há muitos anos e cujos horizontes reais ou imaginários, ou a falta deles, me são mais familiares do que os meus próprios). Não, engano-me. O caso se deu não com o vizinho mas com a gata do dito.

Pois bem. Algumas semanas atrás ele me chamou embora não tenhamos relacionamento estreito, mas simplesmente por ter eu subido no muro que separa nossas casas para podar um galho da mangueira nascida silvestremente no fundo do meu quintal e que eu nunca tivera coragem de derrubar. Ele tomava sol sentado num balde emborcado a um canto, chupando entre os dentes um talo de capim. Em me avistando, e talvez entendiado de estudar o matagal que ele mesmo desleixadamente permitira que se espalhasse pelo seu quintal , ele acenou para mim e chamou:

Dá um pulo aqui. Quero te mostrar uma coisa.

Como eu de minha parte também não tinha grandes projetos em vista naquele dia, resolvi ir ter com ele para ver do que se tratava. Pulei para o lado de lá, não sem um certo risco de enfiar o pé num dos vários montes de cocô deixados por toda parte pelo Rex, o cachorro dele.

Meu vizinho se levantou e se pôs a andar rumo à lavanderia. Fui atrás.

Chegando ao tanque de roupa, ele apontou com o dedo indicador. Olhei embaixo do tanque e vi Frida, a retro-referida gata, dando de mamar a uma penca de filhotinhos.

Quantos são?

Sete. E o pior de tudo é que cinco são fêmeas. Presumo acrescentou desdenhoso, sem nenhum interesse em identificar o sexo de bebês felinos.

Ali estava, bem diante dos meus olhos uma ninhada de sete caraminguazinhos arrepiados de chegar ao mundo e feinhos como só gatos recém-nascidos podem ser. Enquanto eu e meu vizinho, parados, meio absortos, mãos nos bolsos, testemunhávamos o nefasto milagre da vida, Frida pelejava com o septeto de lamuriantes ferazinhas alheias umas às outras, ávidas por uma tetinha de leite.

Bem meu vizinho disse só resta uma coisa a fazer.

A lagoa? perguntei, já sabendo a resposta.

A lagoa foi a réplica seca.

Ah, bem-aventurados os homens (e as mulheres) resolutos(as). A lagoa fica a três quarteirões descendo a rua. Providencial cemitério de todos os serzinhos indesejados que tiveram o azar de nascer nas redondezas, solução para os grandes males comezinhos, repositório dos pequenos e impercebidos erros da natureza. Eis-nos diante dum problema e só nos cabe enfiar sete gatinhos num saco, ajuntar um tijolo para auxiliar a lei da gravidade e executar a solução final.

E assim fizemos. Meu vizinho, claro, cuidou de arrumar o saco e o tijolo e remover um a um os bichinhos do aconchego da mãe para soltá-los distraidamente dentro do saco escuro. A mim coube fazer o acompanhamento (desses que fazem os que vivem à toa).

Tudo providenciado, tomamos o caminho, ele com a carga pendurada num dos punhos, eu, meio cabisbaixo, de mãos no bolso, seguindo atrás, ambos ao som cada vez mais penoso da pungente, órfã miada. No trajeto não trocamos palavra ele porque não é de muita conversa, eu porque me achava pacatamente imbuído do meu papel secundário (tão secundário que a situação prescindia de qualquer comentário que eu pretendesse fazer). Por fim chegamos e paramos à beira da água.

Num prosaico gesto devidamente desprovido de maiores significados, meu vizinho arremessou o saco rumo ao centro da lagoa e, sem aguardar para ver o ponto exato em que afundariam os sete bichinhos em seu túmulo subaquático, virou as costas e começou a se afastar. Quanto a mim, eu não só tinha de testemunhar o ato até sua total consumação mas também, por ser um homem (ou uma mulher?) absolutamente sem certezas, via-me espicaçado por um incômodo laivo de sentimento de culpa em minha duvidosa serventia de testemunha de uma atrocidade (pois se trata duma atrocidade, não?).

Observei quando o saco atingiu a água e produziu o previsível escarcéu, espalhando borrifos em todas as direções, deixando-se inertemente puxar pelo tijolo para o fundo, perturbando a superfície em anéis concêntricos divergentes. Seriam também sete? Bah. Que vocação para supersticioso, debochei de mim mesmo. Quando o último dos anéis morreu à margem da lagoa, enfiei as mãos nos bolsos, virei e comecei a voltar.

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