Durante um segundo

Faltavam uns 300 quilômetros para eu chegar em casa, resolvi parar e tomar um café num dos postos de gasolina que ladeiam a estrada. Enquanto procurava uma vaga em local iluminado, sempre cioso de minha segurança, pensei, puxa, talvez aquele fosse o milionésimo café da minha vida. Repentinamente satisfeito com a ideia de poder colocar em números redondos pelo menos um dos vícios que atormentavam meus dias nesta Terra, dei azo à brincadeirinha mental e prossegui: ei! e se houvesse em outra dimensão um ser imaginário que fizesse o cômputo dos meus cafés e aquele, aquela noite, fosse de fato o milionésimo, e tal ser imitasse aquelas promoções de supermercado que a gente vê nos filmes americanos e me desse um prêmio-surpresa pelo acontecimento?

– Parabéns! – saudaria ele. – Você é o felizardo ganhador dum paliteiro plástico por estar tomando seu milionésimo café esta noite! Veja bem! É o milionésimo café esta noite!

– Cool! Mas o que há de especial nesta noite?

– Ora, você é mesmo distraído! – afetaria espanto o serzinho sem rosto mas com expressão de David Letterman. – Esta é a sua décima quinta milésima noite! Colocando em números ordinais, você está vivo há quinze mil noites! Não é formidável?

– Porra! Eu nem tinha me dado conta! – exclamaria eu, fingindo, de minha parte, estar entre surpreso e desapontado com meu esquecimento. Afinal, não poderia passar a impressão de que era displicente com meus próprios números redondos, mesmo que fosse para um reles ser imaginário com cara de talk show host!

So much! Proferi, satisfeito em poder exibir meu conhecimento de inglês para mim mesmo. Eu sabia mais inglês do que a média das pessoas. Se fosse outro, diria “enough” ou mesmo “that’s it”. Mas bons conhecedores do idioma feito eu só usam expressões não apenas vernáculas mas também pitorescas.

Então o teatrinho mental desvaneceu, dando lugar ao habitual tédio com que me arrasto dum canto para outro no mundo.

Mas a ideia de que eu atingira um milhão – do que quer que fosse – teimava em atiçar minhas fantasias. Tudo bem, pensei, mas seria um deplorável desperdício ter um serzinho imaginário desses só para manter registro dos meus cafezinhos. Talvez pudesse pôr o bicho para fazer coisas mais úteis, tais como contar quantos quilômetros já rodei pelas estradas do Brasil fazendo visitas de inspeção técnica em fontes de abastecimento hídrico, em quantos postos de combustível já parei e quanto dinheiro já torrei em coisas perniciosas à saúde como os cafezinhos e as cervejas que bebi nesses postos. Se tivesse recursos hodiernos – digamos, um computador com um banco de dados – o coisinho imaginário poderia calcular, por exemplo, exatamente quantos grãos de café eu já havia ingerido e quantos carros populares eu poderia ter comprado com a soma de tudo que eu havia esbanjado.

Quem sofre de tédio tanto quanto eu sabe a que me refiro quando sôo tão dramático. Se houvesse uma escala de um a dez das condições mentais que mais afligem o ser humano, o tédio ficaria em oitavo lugar, atrás da perda (em termos genéricos) dum ente querido e da traição amorosa. Nunca passei por isso, mas imagino que a perda dum parente próximo ou a dor de corno tenha remédio, dependendo da saúde mental da vítima. Sei lá, acho que passa com o tempo, com a substituição, mesmo que insuficiente, do ente perdido, com outras experiências interpessoais. E, principalmente, o sujeito sabe por quê. Está bem claro à sua frente. Ele quer dar um tiro na cabeça porque foi abandonado ou traído. Mas o tédio… a indefinição, a vagueza, os tons indistintos, ao mesmo tempo multicores e incolores. Certo, também ficamos confusos quando estamos inapelavelmente assoberbados por uma aflição imensa, mesmo que tenhamos alguma ideia sobre sua causa. Mas sob o tédio é uma confusão surda e disforme, que não podemos relacionar a nada dentro ou fora de nós. Me lembro de várias ocasiões em que pude discernir que uma dor desestruturante me apunhalava e sufocava (essa é das piores). Mas quando sinto esse tédio que tão cabalmente toma conta das minhas faculdades – é! toma conta das minhas faculdades –, não encontro sequer o bálsamo de tentar engaiolá-lo em palavras. Posso tentar fazê-lo agora porque não o sinto. Por exemplo, posso ousar dizer, longe da fera para não despertá-la, que 

Numa represa de águas secas e sentimentos mortos que vazam por paredes rompidas
Chacoalham não se sabe onde nem para que sensações que de instante a instante são sempre as primeiras.
As águas, pegajosas palavras em minúsculas, retrocedem e pendem sem qualquer convicção.
Procuro tomar fôlego
Procuro tomar
Procuro

Então despertei do meu devaneio e apaguei as imagens mentais do serzinho, dos números redondos e do tédio. Finalmente achei uma vaga sob uma luminária. Agora com a cabeça totalmente vazia – só me lembro de olhar em volta sob um vago estado de choque –, estacionei o carro, desci, entrei na lanchonete, pedi um café, sorvi um gole e larguei no balcão, pois estava frio e aguado, paguei e saí de volta para a noite. Caminhei para o carro, entrei, dei a partida e acelerei em direção à rodovia. Então passei por uma pequena estrada local, dessas que saem das grandes autoestradas e levam a fazendas ou vilas. Não sei por que, freei e olhei dentro do escuro, na direção à qual a estrada parecia rumar. Esquecido da rodovia e da volta para casa, girei o volante, acendi os faróis altos e tomei a estrada desconhecida. Dirigindo distraído mas com cautela suficiente para não me meter em situações das quais pudesse me arrepender depois, rodei uns quinze minutos, até avistar uma área iluminada à frente, sob a escuridão. Após alguns minutos, achei-me no que parecia ser a rua principal dum desses povoados que sabemos que existem por aí mas aos quais não damos a mínima importância. Era uma vilazinha típica, modesta e alheia ao caos do mundo exterior. Afora a iluminação pública, tudo estava escuro e calmo. Me lembro de ter achado o lugar sóbrio, produto de gente digna. Ainda distraído, encostei o carro diante duma das casas modestas. Desliguei o motor, desci e rumei para o portão da casa. Na frente havia uma garagem desocupada. Abri o portão, caminhei para a porta e experimentei a maçaneta. Estava destrancada. Entrei, atravessei a sala rumo ao quarto. Tirei os sapatos, depois a blusa de lã. Na penumbra pude enxergar que havia uma mulher na cama. Deitei-me ao seu lado. Ela suspirou mais pesado, mas não acordou. Finalmente dormi.

 

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