Escola de cínicos V

Mal abriu os olhos de manhã viu que aquele não ia ser um dia fácil. Sentiu a boca seca – seca como nunca estivera antes.
“Água”, pensou automaticamente, chacoalhando a cabeça para espantar os pesadelos da noite maldormida. Estalou a língua áspera, procurando um pouco de conforto. “Preciso dum copo d’água”.
Se levantou, se vestiu, foi ao banheiro, comeu um pãozinho com margarina e acabou se esquecendo da sequidão na boca.
Quando saiu de casa os lábios abriam e fechavam espontaneamente, suplicando por algo líquido. Mas na correria para apanhar o ônibus, se espremendo entre os passageiros em pé no corredor do ônibus, suando frio, maldizendo a lentidão do trânsito, torcendo para que seu ponto chegasse logo, tornou a se esquecer da sede atroz.
E assim prosseguiu durante todo o resto do dia. Mal a sede dava sinais de que ainda não fora saciada, ele se via subjugado por uma das centenas de pequenas injunções que nos acometem no dia a dia e acabava por deixar de lado a secura da boca.
Ao voltar para casa à noitinha, tateando penosamente os bolsos em busca da chave, abrindo a porta, indo para a cozinha, sentando-se numa cadeira diante da mesa, esfregava a garganta, atormentado sob as lembranças daquele dia. “Puxa”, pensou, espantado, “não acredito que atravessei toda essa via-crúcis sem me lembrar de matar a sede.”
Nisso percebeu que diante dele, na mesa, havia um copo d’água. Sentiu um espasmo na garganta, um espasmo doloroso. O copo parecia apresentar um ultimato: ou aproveitava aquela chance ou caía morto de fulminante sede.
“Pois então é agora!” Sentiu os olhos marejarem de ansiedade.
Começou a estender o braço em direção ao copo quando viu algo estranho surgir de algum lugar debaixo da mesa, voando em sua direção. Recolheu o braço, acautelado. Que troço era aquele? Quando a coisa suspeita se aproximou, deslizando suave e silenciosa, até parar exatamente sobre o copo, viu que era uma nuvenzinha.
Confuso, ele pôs a mão espalmada sobre os lábios ressequidos, tentando apaziguar a ânsia de beber. Esticou o pescoço rumo à nuvenzinha para examiná-la mais de perto. Era escura e, apesar de ínfima, de aparência ameaçadora.
De repente, para sobressalto dele, um relampejo escapou de dentro da coisa e um raio atingiu o copo. A fulguração iluminou a penumbra em torno da mesa por um átimo. Assim que o brilho desapareceu, um pequeno estrondo assemelhado a um trovão ribombou distante. Então a superfície do copo se agitou e ondas se formaram, encrespando ominosamente a superfície da água.
Alguns segundos se passaram. De repente, um novo raio cintilou do âmago da nuvenzinha, seguido dum novo trovão, seguido de uma saraivada de outros raios e trovões. A nuvenzinha começou a rodopiar, girando furiosamente em torno do copo, como se fustigada por formidável ventania. O copo estremecia sobre a mesa, parecendo prestes a tombar sob o impacto das ondas que se agigantavam indômitas. Às vezes alguns pingos se desgarravam do interior do copo para serem absorvidos pela toalha da mesa.
Entre maravilhado e perplexo, ele ficou inerme, se limitando a observar o insólito espetáculo. De súbito, tão inesperadamente quanto como surgira, a agitação começou amainar e a nuvenzinha se afastou, voando de volta até desaparecer por sob a mesa.
Assim que tudo voltou ao que era antes, a sede tornou a dar sinais de que ainda estava lá. A língua recomeçou a estalar, a secura dentro da boca voltou a incomodar. Ele estendeu novamente o braço em direção ao copo, agora rápido, antes que a nuvenzinha pudesse ressurgir mais uma vez. Levou o copo aos lábios e o entornou boca adentro, sôfrego

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