Não sou eu quem te engendra


No lado direito da cabeça, sob o cerelebo, tenho uma pilha na qual venho juntando tudo que senti até hoje ante tudo que vi até hoje sob tudo que escrevi até hoje para você e agora paro e sento e suspiro e franzo o cenho e limpo a garganta e leio.
Quem foi esse estranho que parece ter escrito quase tudo que pensei ter escrito?
Me dá um nó no estômago.
Quanta bobagem.
Que tamanha, que dolorosa ingenuidade.
Me choca a facilidade com que o estranho se deixou embebedar por suas próprias palavras.
Ele, o estranho, fez com que as palavras se voltassem contra mim.
Com isso, ele, o estranho,  produziu uma prova irrefutável da minha imprudência.
Como pôde ele me expor assim a uma pessoa como você? Oh god, sou um bobo. Um bobo triste.
Ele deixou meu sangue todo lá.
Gotejado no que agora é um frasco de veneno.
Ah, que invencível sensação de desperdício.
Se eu fosse sensato, me livraria da minha pilha, dando cabo da prova, fingindo que sou mais inteligente do que pareço. Mas não sei me desfazer do que escrevo.
É que escrevo com a paixão da magia.
Ontem estava atordoado de eflúvios etílicos, hoje estou aturdido da ressaca frustrante.
A mais terrível que pode haver.
A perturbação é meu estado natural, de uma forma ou de outra.
Preciso duma dor outra.
Por isso venho aqui a enésima vez, Sísifo, exercer este meu patético direito à dor embotada da última palavra.
Como todo bêbado convicto da necessidade da embriaguez, bebo muito além do que posso suportar.
Eis que a natureza me cobra o preço.
Como sempre, alto demais para os meus parcos recursos de alcoólatra alucinado.
Voltei para vomitar.
Verter a bile dessa fantástica bebedeira é tudo que me cabe.
Resta-me sorver o veneno.
Rezando para que seja antídoto àqueles delírios etílicos.
Eis aqui meu último brinde amargo a quem não merece uma única vírgula do que ele escreveu.

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