Você às vezes sente que está chamando a atenção de todo mundo quando anda pelas ruas como se estivesse montado num
camelo?
Se não galopasse nas nuvens neste instante ia extravasar
meu ódio, acabaria chamando um olhudo pro pau, muito provavelmente terminaria
minha noite numa delegacia. Minhas fantasias devem ser suficientes para chegar até
o buteco. Quer dizer, meus sonhos. Não fantasio mais. Em momentos como este
chego a me sentir equilibrado e consigo entender um pouco o mundo e seus
habitantes. O segredo é domar os pensamentos.
Se nunca precisou domar seus pensamentos, você
certamente não faz a mais ínfima ideia do que estou falando. Eles têm vida
própria. Os seus também, imagino. Mas, no seu caso, deve ser uma vida própria
que está em harmonia com você e sua cabeça e por isso você não se dá conta.
Cruzar a existência alheio a esse tipo de conhecimento inútil deve ser uma delícia.
Gente cismada feito eu tem essa mania de, com perdão da tautologia, cismar.
puf puf uf uf, uma pausa.
Subi a ladeira depressa demais. Fumando. Por que
deus foi encarapitar meu buteco no alto dum morro? Me amparo na parede dum
sobrado, enfio a mão no bolso direito das calças, sinto o bilhete dobrado. Fuço
o outro bolso com a outra mão, tateio a foto, um ônibus buzina na esquina, uma
buceta passa raspando rumo à mercearia do Miguel, me vejo criança tentando
abarcar com os olhos a ladeira à minha frente.
Não há quase mais fumantes nas ruas, tirante a molecada e os
retirantes que ainda não acharam seu canto na cidade. Não fumar faz parte do
novo padrão de conduta. Vamos todos ficando mais assépticos, provocando mudanças
em dominó que, no conjunto, nos torna bem diferentes daqueles sujeitos que há
meros 20 anos flanavam pelas esquinas a expelir fumaça pelas ventas qual marias
e joões-fumaças.
Não se preocupe, não vou deitar falação sobre os novos
tempos, a velocidade com que tudo muda, nossa impossibilidade de fazer frente a
elas. Para isso existem os jornais, a internet, os ociosos e os poetas.
Por falar etc., hoje pouco antes da hora do almoço atendo o
celular, uma voz feminina de máquina do outro lado pergunta se poderia fazer a
gentileza de responder a uma enquete.
Só se for rapidinho, imponho. Afasto o aparelho do ouvido e
franzo a testa para ele como se fora um caco saído dos anéis de Saturno.
Profissão? a voz feminina maquinal indaga.
Essa, respondo com orgulho: nenhuma.
Aposentado? a voz insiste.
Tinha certeza. Pouca gente aceita as coisas como
elas são.
Nenhuma! repito, agora com ponto de exclamação.
Quer dizer que o senhor não faz nada na vida? a voz
de máquina não se inibe nem titubeia.
Que é que o senhor faz?
Advogo.
Ah! Então é advogado.
Olha, moça, se é pra facilitar essa sua enquete,
tudo bem, pode botar aí que sou advogado.
Não é que tenha algo contra advogados. Simplesmente
não gosto de dizer que tenho uma profissão. Os que gostam, os que dizem, os que
anunciam de boca cheia, pode reparar, são todos fanáticos. Médicos, engraxates,
balconistas, blogueiros, não passam de maníacos.
Sou médico! propagandeiam os doutores com sua
fantasias brancas de virgens morais e seus estetoscópios intrometidos. Bela
merda! respondo mentalmente quando dou com eles em clínicas ou mesmo numa rua,
do alto do meu camelo.
Não sou nada! pode registrar aí.
O senhor costuma ir ao fórum? a voz maquinal não
desiste.
Não bato o telefone, ou melhor, não desligo o
celular porque me comprometi a responder a porra da enquete e sou homem de
palavra.
Sim-senhora, costumo.
Tem defendido alguma causa jurídica para algum
cliente?
Sim-senhora, tenho.
E cobra pelo serviço?
Já contei aos meus quase três leitores o que
faço quando sou obrigado a me consultar c’um médico por um desses enguiços que
vira e mexe a natureza nos apronta só para não esquecermos de que ela,
natureza, é nossa guardiã, patroa e proprietária?
Seguinte:
O senhor já tem ficha aqui? a atendente tasca na
lata assim que entro na sala atulhada de homens, mulheres e crianças enguiçados
à espera da vez.
Não-senhora.
É a primeira vez?
Sim-senhora. (Sempre é, ó deus amado.)
Sem se abalar, ela se mune daquele ar de
sarcedotisa do oráculo de Delfos, estica os dez dedões de unhas roxo-defunto
sobre o teclado do computador e inquire:
Nome?
Digo.
Sexo?
Digo.
Endereço?
Informo.
Profissão?
Escafandrista.
O olhar da sacerdotisa se esvazia ainda mais do
que poderia parecer possível a princípio. Por uns instantes a alma da moça abandona
seu corpo para dar um mergulho na Fossa das Marianas, ponto mais profundo dos
oceanos. E sem escafandro.
Pode soletrar? é ela tentando subir à
superfície.
Soletro.
A sacerdotisa sentada ao lado da minha desvia discretamente
um olharzinho perdido para o meu lado e entreabre os lábios, confusa. Hosana
nas alturas!
Sim-senhora. Cobro pelo serviço.
Então há de concordar que, se costuma ir ao
fórum, se tem defendido uma causa jurídica para um cliente e se cobra pelo
serviço, então não há dúvida. O senhor é um advogado! Sem tirar nem pôr.
há uns anos redarguiria (!) que não
sou “um” advogado, mas simplesmente advogado. E na certa não deixaria passar aquela
medonha conclusão. Cáspite, há quantas décadas não escuto um sem-tirar-nem-pôr
assim com tão deslavada candura? Desde que mamãe se foi? Tanto tempo assim?
Minha filha, é tudo brincadeira.
Silêncio do outro lado...
Alô?
Brincadeira como, senhor? Saiba que estou aqui a
trabalho. Se não queria participar da minha enquete, bastava dizer.
Senti o rosto afogueado, como gostava de pensar
Bentinho ao imaginar Capitu lhe traindo com seu melhor amigo.
Me desculpe, moça. Não tive a intenção.
Afinal, o senhor é advogado ou não?
Como já expliquei. Sou, exerço o ofício de causídico
– criminalista, mais precisamente – mas não gosto de ser. Entende?
Bem, vou relevar, considerando a gentileza com
que se prontificou. A voz maquinal se faz magnânima. Há alguma outra profissão
que gostaria de declarar?
Há, sim. Blogueiro.
Silêncio do outro lado...
Pode escrever aí. Blogueiro-poeta. Sim, com
hífen.
O celular ficou mudo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário