A música está morta

A música morreu com Johann Sebastian Bach. Duvido que os contemporâneos dele tenham percebido (ainda mais que deixou alguns filhos músicos que tentaram continuar sua obra). Como terá sido escutar Bach ali em pessoa em pé dentro duma igreja ou na presença do rei na corte? Talvez a mesma falta de perspectiva de não saber que nunca mais haveria alguém igual. A mesma falta de perspectiva de alguém que morre após o almoço mas que acordou aquele dia sem a mínima ideia de que seria seu último dia vivo.
Então veio Beethoven e pensou, a música está morta e devo ressuscitá-la.
E assim o fez. Mesmo ensurdecido.
E, ao fazê-lo, a música já não parecia a mesma. Dormiu régia, acordou terrena. Tão outra, que nem se lembrou dos seus tempos de fuga, os mil sentimentos convulsionados para, magicamente, amalgamar o sentido divino. Já não tinha a docilidade própria de quem fala com a Santidade. Começava ali a música a perder o hímen angelical. Soube, tão logo renasceu, que nunca mais seria o tempo da pureza. Deus começava a cochilar e os homens iam se incumbindo da tarefa de comandar o mundo, chegando mesmo a aspirar ao Seu posto. E, entre esses novos temerários, um se encarregava da tarefa de explicar os homens aos homens. Kant havia matado Deus, cujo cadáver ficou no aguardo de quem o inumasse. O enterro viria a ser finalmente perpetrado por Nietzsche ao som das medonhas óperas de Wagner.
O mais recente de todos os homens da nova era pareceu então igualável a um de seus discípulos, Schubert. 
Franz Schubert até podia almejar a ombrear-se àquele que tomou a si o papel de arauto do humano. E bem que tentou. Dominava a técnica tão bem quanto seu pai musical e, se não possuía a mesma genialidade, ao menos a vislumbrava, o que está fora do alcance da maioria dos homens. Criou canções inesquecíveis e sinfonias memoráveis.
Robert Schumann, contemporâneo de Franz, foi também um dos músicos herdeiros dos mestres patrícios. 
Schumann, porém, tinha uma grande diferença em relação aos demais figurantes desta história — era, além de compositor, crítico musical. E, sendo genial quase como Beethoven e de certo tanto quanto Schubert, mostrou que homens ao mesmo tempo artistas e explicadores são casos raríssimos e preciosos na história da arte.
Como crítico, Robert não perdoava — toda nova composição que chegasse ao seu conhecimento lhe soava aos ouvidos treinados um mero pastiche da diabólica musicalidade de Ludwig van Beethoven.
Pelos mais de vinte anos em que fez crítica musical, Schumann se dedicou à veneração do mestre. Defendia que Beethoven simbolizava o próprio orgulho germânico. Mais: a música beethoveniana tocava o transcendental e escutá-la como entretenimento seria um pecado próprio de “filisteus”. (Que diria Robert se uma máquina do tempo o trouxesse até 2013 e por ele passasse um caminhão da Ultragás trombeteando Pour Elise?)
Até que, numa viagem a Viena em 1838, dez anos após a morte de Franz Schubert, Robert Schumann encontrou entre os manuscritos deste a partitura da Nona Sinfonia, sobre a qual decretou um dístico que ficaria famoso: “duração sublime”. E a comparou a um “romance em quatro volumes”. Na Nona Sinfonia de Schubert Robert pensou ter encontrado um herdeiro digno das serenatas, sonatas, quartetos e sinfonias de Ludwig.
Mas Schumann estava enganado. Com sua Nona, Schubert lograra apenas um contato fugaz com a genialidade. Ludwig van Beethoven já dera seu recado a Deus com toda a competência possível e, mais importante, já Lhe deixara claro que os homens — ou pelo menos os mais altivos, os que não baixam a cabeça tão facilmente — são perfeitamente capazes de decidir seus destinosAssim como Wagner, Strauss, Stravinsky e tantos outros compositores, para ficarmos apenas na esfera da música. Ainda hoje continuamos zonzos sob a algaravia de acordes inacreditáveis gerados entre o Interlocutor de Deus e o Herói dos Homens.