Prestes

Pela primeira vez senti vontade de ser borboleta hoje. Não, nada a ver com a pseudopoesia escapista que desde o ano dez mil a.C. tenta em vão recobrir o mundo de relva verdejante e rosas a cada minuto beijadas por libélulas numa magia que, quem sabe uma noite de verão, implantará a supremacia do Bem. A borboleta que me deu vontade de ser hoje nem borboleta me pareceu ser. Na verdade estava mais para mariposa, aquelas que às vezes não sabemos direito se são do Bem ou do Mal, se devemos adorar ou temer.

Mas não interessa.

Queria ser aquele bichinho que passou voando diante do meu nariz enquanto meu mouse zanzava perdido por esta rede cibernética que já é mais infinita que o universo. Fui com a carinha dele, o bichinho, à primeira vista. Me pareceu até simpático, sem o cabotinismo dos seres de asas sedosas e translúcidas que buscam nos seduzir com a beleza e o mistério dum filminho de Spielberg a voar com o arzinho sonhador dos que ocultam o inequívoco propósito de nos enlevar o espírito e distrair nossa atenção da dureza da vida.

Ah, vida dura, esta. Não me deixa sequer sonhar com o que não posso ser. (Tudo bem que nunca sonhei nem com o que não posso ser nem com o que sempre fui. Na verdade, pela segunda vez (você sabe, sempre desconfie de quem diz "na verdade"), nunca dei maior importância para os meus sonhos. Não gosto de sonhos, muito menos de sonhadores. Os que sonham com flores, com suas fantasias ideais de infância, então, me dão náusea.

Mas ainda me encafifa aquela ínfima, aquela insossa mariposa ter-me chamado a atenção. (Podia até dizer que é exatamente essa a razão por que estou escrevendo este post. Mas, na verdade, não sei, nem quero saber, por que estou escrevendo este post.)

Ela passou diante do meu nariz, perambulou dois, três segundos no meu campo de visão, de repente desapareceu atrás do monitor. Hmmm, desconfio até que isto daria uma fábula à la Oscar Wilde. O rouxinol e a rosa, sobre que escrevi há uns dez anos, entediado ao suicídio que estava. 

As baratas são mais sedutoras, para infelicidade desta nossa raça que sempre prefere se maravilhar com um mundo róseo fabuloso a aceitar a nojeira à sua volta. Voam sem saber e existem sem saber e nunca foram dignas dum único elogio, nem mesmo dele, Franz Kafka, nas dezenas de milhões de anos em que tão renitentemente insistem em sobreviver nas frestas imundas. (Por isso mesmo sabem muito bem por que debandam às tontas quando a luz se faz presente num passe de magia negra.)

Então, quando a minúscula mariposa sumiu por detrás do monitor naquela cena que daria uma bela duma fábula, um clarão emocional deixou tudo às claras aqui dentro deste pavilhão sombrio que é meu habitat — fui tomado da mais profunda inveja pela vidinha efêmera cujo propósito era durar não mais que dez minutos. 

Por um instante fui testemunha da maior fonte de felicidade que pode haver e por um infinitamente breve instante me dei por satisfeito. 

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