Manjo a cara da morte

Quase dez da noite. Segurei até aqui, agora não dá mais.
A luz resolveu ir embora. Assim de repente.
Olha, a luz quando resolve ir embora, é de repente. Você não sabe, por isso estou lhe dizendo. Você nunca viu a luz ir embora.
A luz foi embora mas tudo continuou claro, entende? Não, você não entende.
Pensando bem agora, ainda não sei como foi que soube que a luz tinha embora, pois não fez diferença nenhuma, ela se foi e pronto.
Mas lembro bem que senti uma... uma...
Não sei bem o que foi que senti. Ia dizer “dor” mas não doeu. Quer dizer, doer, até que doeu, mas foi uma dor diferente. Não sei explicar. O melhor que posso dizer é que foi um desconforto, um tremendo desconforto, mas estou tão acostumado ao desconforto.
Pensando melhor ainda, não foi bem a luz. Foi um facho de luz.
Era um facho de luz em forma de bloco. No primeiro instante tive a impressão de que poderia usar esse bloco como base para construir um universo só pra mim.
Mas você me conhece. Não sou dado a construções. Perereco destruir. O mundo já tá atulhado demais de tudo que é porcaria e supérfluo e anacrônico.
Ontem li “anacrônico” em algum lugar e me reencantei. Há quanto tempo não vejo essa palavra. Lembrei duma época em que o anacrônico fazia tremendo sentido para mim e meu mundinho particular que se esbarroava e se refazia a cada instante.
Bem, voltando à luz que se foi de mim, me senti meio idiota no momento e fiquei lá dando tchau como se estivesse num desses filmecos hollywoodianos que estão sempre apelando para a nostalgia dos telespectadores. O telespectador de hoje é um retardado, só sabe olhar o mundo como Hollywood e os publicitários mandam que ele ou ela olhe o mundo.
Não, é mentira. Não fiquei lá dando tchau. Apenas acenei algumas vezes e tudo desapareceu e fiquei sem saber onde pôr a mão que balançava no ar.
Se houvesse um vulcão em Sampa como o de Pompéia, ia dormir esta noite rezando para que o vulcão  de Sampéia entrasse em erupção durante a madrugada, me transformando numa estátua (de sal?) a brandir alegre e tontamente a mão para algo que há milênios sumiu atrás do horizonte.
Uma estátua tão estúpida...
Uma estátua tão energúmena...
...que os paleontólogos do futuro nem se dariam conta de sua estatuidade.

(Te peguei, não peguei, luz-fantasia de boca seca de sonho? Não é um truquezinho bisonho desse tipo que vai me atrair para uma emboscada. Te entera, muchacha.)