Solidão é liberdade.
A importância da liberdade é relativa. Faz
diferença quando você se sente estrangulado. A ponto de desmaiar.
Não duvido ser capaz de desmaiar por
outro cedo ou tarde. Sei que vou me espantar mesmo assim.
Levei tempo demais para assumir que tenho
essa necessidade de atingir extremos. Uns três-quartos de toda minha interminável
vida. Podia ter começado a praticar mais cedo. Hoje sei que tudo é questão de prática. Antes me
achava demasiado puro para macular minha inocência.
Os de-bem-coa-vida anunciam aos mil
ventos que você pode esticar uns cinco anos na existência se não fumar. E mais sete
se não beber. E outros seis meses se engolir verdura todo dia no almoço. Faço
as contas em retrospectiva. Devo ter vivido uns três dias inteiros a cada
tragada que dei num cigarro. Somando, deve dar aí uns 180 anos. E a cada trago
num balla12 provavelmente vivi uns quinze dias. Doze, a cada gole numa
kaipiroska. Trinta e dois a cada uma daquelas golfadas de Cavalinho da hora do
almoço até a manhã seguinte na rua detrás de casa entre os 13 e os 17. Total geral,
sou mais longevo que Matusalém. E tem o agravante da intensidade. Só aí posso multiplicar
por quatro. Sem falar que a cada cigarro tragado e a cada gole bebericado ia me
desdobrando em sei lá quantos outros eus e outros nós e outros eles. (E, sendo
um cavaleiro, pouparei meus quase dois leitores da especulação de quanto avancei
perpetrando a única lida a que jamais dei, e ainda dou, alguma importância – o farejo
de bucetinhas de raparigas em flor ao cair da tarde.)
Posso assim concluir que “já” ultrapassei
a marca dos mil anos faz tempo. Com outro agravante – me sinto inusitadamente
novo pra minha idade.
Melhor ainda – sou atemporal. Um tico
mais de sorte podia ter caído nas mãos de pais leitores de Nietzsche, aprendido
a cuspir na cara da humanidade aos tenros dez anos ao invés de me submeter à “experiência”
de tolerar a cagação de regras dum punhado de profes orgulhosos da própria
mediocridade que me ensinaram a contento a grande lição de desprezar as
estrelas para me concentrar no tremular das minhas frágeis pernas.
Pelo menos duas pessoas “já” me disseram
que viverão mais de 100 anos. Em ambos os casos, estávamos num papo casual e
fiz que não dei importância. Não, a importância de viver mais de 100 anos não é
relativa.
Passado o trauma, me pus a pensar. Que é
que leva alguém a almejar a viver mais de 100 anos? Excesso de hollywood? Overdose
daqueles filmecos de inspiração fantástica que brincam com a noção da
imortalidade? Haverá na mente humana algo mais imbecil que a aspiração à imortalidade?
Que é que leva alguém a se entregar a uma fantasia pueril ao mesmo tempo em que
deixa deploravelmente de lado a experiência do momento? E as implicações dessa longevidade futurista, cristo
redentor, de que já falei outrora e não estou disposto a me repetir?
Os poetas todos cantam e cantaram o império
do momento – um segundo, ou uma fração
dele, em que você se rebela e com um reles meneio da mão afasta para longe as
toneladas de ensinamentos e “experiências” alheias que tentaram lhe entuchar na
cachola e abre a boca e as narinas em busca do que é e do que é seu, só seu e de
mais ninguém.
É um momento terrivelmente solitário.
Requer um tipo de coragem que não nos
ensinaram a ter nesta nossa cultura católica refratária à individualidade.
Esta nossa cultura católica em que tudo é
milagre.
E sob a qual eles operam o grande milagre
de se olhar no espelho e não se enxergar.