Baby, high time we went
Joe Cocker
Um dia meu pai me levou a passear no litoral. Tinha dez anos.
Descemos a serra, ladeira que não acabava. Ouvidos tampando por causa da
pressão. Vai engolindo saliva, meu pai disse. Não respondi, não engoli.
Preservando a sensação dos tímpanos. Afastando a mesmice prum canto. Essa porra
de ver-por-dentro. Não queria filosofar, mas é foda nos condenarmos a nós
mesmos. Sendo outro pra variar. Podendo escolher o outro que quer ser. Analiso
cada um que conheço. Peso contras e contras. Obviamente, esse exercício só é
interessante porque posso retornar a mim à hora que quiser. Comecemos pela
Sílvia. Ugh. Esse negócio de ter buceta dá aflição, mesmo aquela Perinha
Celestial. Não suportaria ter em mim um Repositório de Pintos Fuçadores
Respingatório de Porra e Ocasional Boca do Inferno por Onde Saem Infantes aos
Berros, a melhor definição foi no estalo que tive aos dez anos, BUCETA: ORIGEM
DE TODOS OS MALES, Aurélio, se me pregando no cérebro feito etiqueta
auto-adesiva no que viria a ser um dos meus códigos de barra definitivos. Vai
coincidir assim no raioqueoparta. Crescendo, arranquei a porra da etiqueta, mas
ficaram aqueles restos de papel e cola bem no meio da ideia. Deslizando Anchieta
abaixo, fugindo do mundo absurdamente enfadonho que parece se diluir nas
alturas do planalto, fechando os olhos, meio surdo, o murmúrio ininterrupto do
motor, despencando desamparado no meu secreto Vale Vaginal. Quem não gosta de
andar de carro, me diga. Às vezes quando o corpo fica angustiado a única
solução é entrar no Miata e meter o pé no acelerador e descer a serra. Tem dia
desço e subo de novo e de novo até cansar. Pena que seja tão curta. Tem dia,
estando animado, pego a estrada para Cubatão e vou até aquele sinespe
palafiteiro sobre o mangue ao pé da serra, dutos estendidos preguiçosos subindo
a encosta, no céu halo róseo de veneno. Paro o Miata a 150 metros, o suficiente
pra poder enxergar alguns detalhes e cair fora a tempo em caso de ameaça. Paro
e fico assistindo e acelerando o motor e o carro chacoalhando gentil feito um
berço. Meus olhos olham as palafitas, olham o conta-giros, 4000 rpm, 5000,
6000, só escuto a máquina com seu gemido longíquo dos êmbolos orquestradamente
movidos pela árvore de manivelas dentro do cabeçote sob harmonia suprema a 24
válvulas em sintonia e consumo ótimo de gasolina e oxigênio. 7000 rpm, se
soltar a embreagem disparo a 105 km/h em 3 segundos, suficientemente rápido pra
escapar de tiros. 8000 rpm, o Miata para de chacoalhar, vai vibrando. Frêmito
estável, tradução segura do estado perfeito de movimento imóvel. Por uma fração
de segundo solto a embreagem e ele ameaça um solavanco avante, sem girar as
rodas. A essa altura já tenho uma pequena plateia de modorrentos petizes e
adolescentes mamelucos a me observar, olhos ausentes de quem não enxerga e
bocas entreabertas pondo à mostra dentes deteriorados e almas inexistentes.
Libero meio milímetro mais a embreagem, as rodas giram em falso levantando uma
névoa de poeira com pedriscos, o Miata se eriça querendo desembestar mas
obedecendo disciplinado à nanométrica sutileza do meu pé esquerdo na embreagem,
precisão necessária em que os destinos se traçam na vida. Pela pressão colocada
no pedal do acelerador controla-se a altura da carroçaria do solo e o nível de
ruído no ambiente e o grau de partículas no ar e a cor do mundo em volta. À
plateia de guris sorumbáticos vieram juntar-se alguns adultos igualmente
desafeiçoados e amargos e inefáveis. Continuo acelerando estudando-os. No olhar
de alguns há indícios de curiosidade. No de outros, sombras hostis. De repente
ergo meio centímetro o pé da embreagem e vôo na direção deles. Freio. O bando
foge qual baratas enveredando pelas miríades de pinguelas entre as palafitas,
parando quando se vêem em segurança no meio do mangue. Libero o pedal outro
meio centímetro e esterço o volante totalmente pra esquerda. O Miata rodopia
num cavalo-de-pau, envolto na névoa poeirenta marrom-vira-lata da rua de terra
batida, uma fuzilaria de pedriscos se abre pra todos os lados e forte,
apaziguante cheiro de borracha queimada me entra nas narinas e calco o
acelerador e livro plenamente a embreagem, 10, 20, 30 segundos, finalmente meus
olhos vêem algo de humano nos rostos da minha plateia e levanto definitivamente
o pé esquerdo e afundo resoluto o direito e parto. Por dois segundos estudo a
hipótese de olhar no retrovisor. Decido olhar quando sei que já é tarde.
Num sonho chegamos a Praia Grande, que depois de adulto constatei
ser o paraíso fúnebre da classe média-baixa paulistana e adjacências. É uma das
minhas experiências. Que estou aqui pra compartilhar. Há anos quero
compartilhar. Que aquele dia fiz uma descoberta. Que depois, inúmeras vezes e
sob outras experiências, pude atestar. E revivo frequentemente. Descobri Jesus.
Computador que só computa e produz maravilhas, já pensou? Meu pai procurou e
achou uma sombra debaixo dum chapéu-de-sol. Vê aquele morro, apontou. Vamos
subir e descer do outro lado. Vagamente, imensamente repleto de mim mesmo pensei,
o que será que tem do outro lado. Hoje posso teclar e saber, naquele tempo não.
Como é que pode? Tem gente com cabeça de laboratório, cheia de aparelhos e
circuitos, que sabe a diferença entre formal e virtual, gente eletrônica,
sistemática. A maioria, não. É anômica. Corja de deslumbrados. Os sabichões,
não. São hábeis, claros, coerentes e integrais. O recurso que mais gostam de
usar numa discussão é “me convença”. Aprenderam com os biguemaqueanos. Não
exercem um papel, saca? São eles mesmos, reais. Pior: não precisam provar a
ninguém. Só investigam o que existe fora deles. Seres isentos. Descemos do
carro, minhas pernas entram no mato, aqui não há cobras, meu pai diz. A essa
hora estão dormindo. Então vi a sabedoria. Bem ali do meu lado. Meu próprio pai.
Começamos a subir a montanha, serpeando despertos por uma senda picada contínua
imersa na penumbra da mata fechada. A encosta era íngreme. Não estava cansado,
mas a certa altura comecei a fingir resfolegando. Meu pai me agarrou um dos
pulsos e daí em diante me puxou. Sabia que era manipulação mas não ligava.
Puxava com zelo cada vez maior. Me sentia meio imoral. Hoje sei, não sabia se
assim mereceria o respeito dele. Hoje, com essa minha compulsão a me indignar
com tudo que desaprove, me admiro por ele não se revoltar. Ainda mais, hoje
sei, que ficara completamente sem dinheiro. Isso ninguém suporta. Você suporta
uma porrada de coisas: ficar sem comida, sem água (desde que não te mate), sem
alternativas, sem possibilidades, sem poder, sem luz. Você s-u-p-o-r-t-a uma
PORRADA de coisas. Mas ficar sem dinheiro ninguém aguenta. Sem propriedades,
nem se fala. Essa é uma das razões que levam os jamílsones ao estado de
constante sobreexcitação que beira a loucura. Se você não tem dinheiro, como
pode pagar o preço? Eis a pergunta básica. Pode viver pra trabalhar, pra
mentir, pra esperar pra ver o que acontece, pra tirar conclusões, pra lembrar.
E em meio a tudo isso você vai em frente, vacilando mas vai. Mesmo que seja
puxado. Chegamos ao topo do morro. À nossa frente um céu e um mar verde-azulado
profundo que passou a ser parte constante dos Sonhos e Delírios. Meu pai olhou
para mim dizendo com o olhar, agora você não é mais inocente. Então fez-se
contato. Me senti justo. Consenti me aproximar dele. Fiz uma descoberta. Quando
nos pusemos a descer um penhasco, demos c'uma gruta. Não olhe dentro, ele
disse. Não olhe, mas é aqui que fica. Fica o quê? Perguntei distraído. Uma das
válvulas da sua vida, ele pensou.
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