Os admiráveis


Literalidades

Admiráveis, certas pessoas. Ao contrário de mim — um bruto, indivíduo mal-formado que não sabe olhar no espelho sem deixar de ver só a si e mais nada —, lapidam-se, lustram-se, lustram-se. Lustram-se tanto, que lhes sobra só brilho.
E tal como a luz, não têm onde pegar. A alguns, quase os paro para saber: por favor, seu fulano, onde é atrás, onde é a frente?
Gente esquisita. Não terão estofo? Só o lado de fora?
Fachadas indo e vindo, vindo e indo. Enquanto as olho atônito.
Quão sutis. Etéreas, mesmo. Demasiado para mim. E para a minha nata rudimentaridade.
Em geral não se vendem — não como quem renuncia à dignidade pelo ouro — e no entanto, ai, no entanto, só fazem se leiloar.
Até o fim, até o derradeiro fim, como se não houve alternativa, apregoam: “quem dá mais? Alguém dá mais?”
Mas nunca batem o martelo. Sabem que o próximo lance sempre pode ser mais alto.
E lá se vão todas oferecidas pavoneando-se pelo caminho sem bifurcações.
Que delícia de caminho! Mão única, nada de encruzilhadas. O verdadeiro caminho suave. E unívoco.
Cuidado! acautelo-me. São também geniais. Pois mesmo antes da invenção do marketing já se promoviam.
Espertíssimos, alguns. Matreiros, todos.
Haverá no mundo maiores peritos em sobrevivência?
Sim, nascem com respostas. Não há circunstância que lhes confunda. E têm tudo na ponta da língua.
E a saída... ah, a saída! Tão clara, tão na cara. Como não pensei nisso antes?
Mas não seja ingênuo a ponto de lhes perguntar. Neste mundo sem respostas, quem as tem é rei.
E eles não seriam tolos a ponto de ajudar na sagração de mais monarcas.
Eu, que quando quero dizer, digo, quando quero rir, rio, quando quero chorar, choro, eu vejo os matreiros me olhando intrigados, uns, apiedados de comiseração e espanto, outros, certos de que não tenho jeito.
Mas nenhum deles, qualquer que seja sua espécie, me censura. Nada! nem um resmungo, um cenho franzido, um alerta. 
Repreender expressamente, jamais! Seria conspurcar o alvo, diáfano véu de seda que parece acobertar suas existências.
E jamais se cometa a asneira de querer um tequinha desse véu! Primeiro, ele só existe para as divindades. Segundo, é invisível. Portanto, impróprio para nós que podemos ser enxergados, que temos carne e temos osso.
E mesmo que a muuuuuuuito custo você um dia conseguisse enxergar o véu e se enfiasse sorrateiramente sob ele, eles, os seres etéreos, saberiam e num estalar de dedos inventariam outro, ainda mais invisível.
A égide deles é a sofisticação — não umazinha qualquer que pudesse estar ao alcance de gentinha ordinária feito nós. Não. Estou me referindo é à Sofisticação inacessível, código secreto através do qual essa gente parca em número no mundo mas detentora de todo o poder se identifica. Para eles, trata-se da suprema linguagem que os une e separa do restante dos homens e mulheres, mamíferos primários que meramente habitam o planeta à mercê da lei de Darwin — lei definitiva da qual dão-se galhardamente o luxo de isentar-se.
Essa linguagem é mais poderosa do que o inglês ou qualquer outro idioma universal. Quando dois desses seres se cruzam no mundo, por fortuito que seja o encontro ou rápida a inefável troca de olhares significativos, prontamente se reconhecem como Admiráveis e passam a dialogar por meio de idiossincráticos e crípticos signos vocabulares e gestual estudado. E assim põem-se alheios às ridiculamente trágicas pessoas à sua volta, pois estão conectados por um sublime e sólido elo de aço banhado em ouro mas ao mesmo tempo tênue como o rastro de nitrogênio unindo duas nuvens boreais. Irmanam-se em semidivina comunhão e harmonia que, sabem, a Natureza — não Deus! — lhes proporcionou em dádiva exclusiva.
Feito uma genuína raça de perfeitos, têm o dom de se pressentirem. E logo se identificam. E se conectam. E assim dá-se a santíssima, singular, formidável comunicação entre os Eleitos!
Não, não se trata duma classe social “privilegiada”, nem dum grupo de bacanas com casa nos bairros chiques das cidades mais ricas, nem da elite dum país, e tampouco duma categoria de profissionais “bem-sucedidos”. Trata-se, sim, de pessoas de cepa desconhecida e identidade vaga, quase fugaz, e por isso mesmo, de complicada definição.
Admiráveis esses Seres Admiráveis!
E estão por toda parte.
Lisboa, América Latina, literalmente qualquer outro país.
Podem ser um pescador esquimó, uma engenheira mecânica paulistana, um australiano excêntrico, uma professora de geografia havaiana. 
Podem estar descendo a ladeira do Porto Geral, pedindo passagem pela tortuosa rua Direita, sentados num teleférico duma estação de esqui no gelado Alasca.
A situação geográfica, a distância, o nível de interincomunicabilidade, a escolaridade, o background, nada disso tem importância — o que conta é que são portadores de grau máximo de Sofisticação.
A Sofisticação leva à Comunhão. A Comunhão, à Empatia. Esta, ao “Sucesso” nos relacionamentos. Às vezes o “Sucesso” capacita o Admirável a comer a mulher do vizinho ou a Admirável a dar para o marido da vizinha (caso seja heterossexual, claro). 
Para os normais, a Empatia pode resultar no máximo num bate-papo, numa troca de sorrisos sábios e equilibrados ou risinhos nervosos, ou, se for negativa, numa troca de impropérios ou safanões. 
Com os Admiráveis, é diferente. Tomados desse sentimento único, avassalador, não agem nem reagem. O Requinte é tão sutil que acontece e não acontece ao mesmo tempo. Não há um esgar. Não se mexe um mindinho. Não se experimentam comichões.
A Empatia não é... bem, não é uma empatia… inocente. É um Método. Escrutínio. O Querer e o Saber. 
Os Admiráveis têm a técnica — mas que, paradoxalmente, não provém da prática nem do estudo: simplesmente existe.
Mais do que os pobres-diabos que pululam insensatos ao deus-dará — escumalha feito eu e você —, que com nossa linguagem natural nos expressamos e pensamos com nossos botões, os Admiráveis têm como razão última o exercício de Viver. 
Mas não é viver apenas. É Viver Sofisticadamente, em linguagem não passível de ser ensinada nem aprendida, apenas herdada. 
O que faz do Herdeiro um ser tão especial é exatamente a Herdade. Outros, para conquistar um lugar ao sol que nasce para poucos, precisam ter alguns talentos comezinhos como capacidade de esforço, obstinação, coragem, sensatez, todos aprendidos a duras penas e que em geral acabam dando algum resultado. 
Para o Herdeiro Sofisticado, obviamente não. No contexto da Sofisticação, o talento pessoal transmitido geneticamente é mais ou menos um atributo divino, que faz do Eleito o silencioso mas todo-poderoso espécime duma raça superior. Posso gastar 30 anos de minha vida estudando o linguajar, as maneiras e os trejeitos dos Admiráveis, e até ser capaz de alguma forma imitá-los — mas só enganarei leigos. Os Genuínos saberão que posso ter colesterol e ácido úrico no sangue. Mas Sofisticação, meu amigo, Sofisticação não é pra qualquer um.



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