A copa, enfim

Explosões. Silvos. Metralhas. Gritos. Chiados. Suspiros. Estarão os russos se acercando de Zampa? Em a Queda de Berlim Beevor diz que a cidade ficou uma semana ininterruptamente iluminada sob o cerco do exército vermelho e o estrondo dos canhões de até 160 mm. Brasileirinhos e brasileirinhas esbaldam-se em seus folguedos porque jamais passaram por experiência sequer remotamente parecida. Nossa referência mais próxima é a Guerra dos Farrapos. Nossos guerreiros são os covardes que escapam da favela para assaltar um classe-média capado, incapaz da autodefesa porque nossos políticos de araque nos proíbem de andar armados. Viramos patinhos de tiro-ao-alvo no parque-de-diversões da molecada alucinada de craque. Na Alemanha de hoje não se soltam rojões. Embora se achem mil corpos nos arredores de Berlim ano após ano.  Falta faz a história. O tropicalista heroísmo brasílico se resume às verdejantes praças do futebol.

Espero o jogo começar. As explosões cessam. Saio sem me dar o trabalho de trancar a porta.

Como diria mamãe, que já não diz nada há meses, não há viva alma na rua. Cada heroi verde-amarelo em estertor diante dum Emburrecedor de LCD de 40" comprado em 30 vezes nas CB. Dos 200 milhões de bananas amarelos-verde, só um ou outro mendigo visível, alienado em seu autismo conformado e portanto inacessível ao "clima", como gostam de descrever os repórteres semianalfabetos nos telejornais. O "clima" da copa, o "clima" nas ruas, o "clima" na bolsa de valores, o "clima" no congresso, na delegacia, no presídio, na casa de dona Maria que acabou de perder o garoto de 12 anos na boca de fumo, na briga na sala de aula, na farra pela vitória do escrete canarinho. Depois vem a "expectativa". Provavelmente é o clichê mais surrado na boca dos rapagões galãzinhos e das moçoilas gostosinhas que os diretores de telejornalismo escalam para mostrar a carinha bonita na tela e narrar num rico léxico de sete vocábulos a tragédia nossa de cada almoço e de cada janta. Se um dia proibissem o uso de "expectativa" nas transmissões da tevê, as mauricinhas e os patricinhos engasgariam em interminável pausa da palavra que se recusa a emergir das escuras profundezas da falta de leitura.

Vou seguindo tropicando aturdido de inebriante encantamento e solidão. Suprema delícia, nenhum carro. Os selvagens do trânsito estão todos adestrados diante do Asnificante de Plasma. Este é o rápening coletivo que Oiticica buscava. Duzentos milhões de seres supostamente humanos olhando exatamente a mesma cena, escutando exatamente a mesma voz, pensando exatamente o mesmo pensamento, sentindo exatamente a mesmíssima emoção. O imenso rebanho dos telespectadores antenados na una sensibilidade das novelas e dos plim-plins e das peripécias dos famosos de 15 segundos de fama. O ideal de unanimidade dos adolfs e josephs. A estonteante manada de 8 bilhões de ovelhas sintonizadas na mesma estação, marchando no mesmo passo, suspirando no mesmo diapasão. Quarenta e cinco minutos do mais absoluto desaparecimento da individualidade. Quase posso escutar o trovão rítmico e surdo de milhões de corações palpitando em uníssono.

É tamanha a sensação de liberdade e desprendimento, que me dá um friozinho no estômago. Provavelmente é este o sentimento de autossuficiência na solidão que os grandes experimentam sem precisar do isolamento físico. Saber-se de fato isolado exige coragem para não meter o rabo entre as pernas. Andar pelas ruas vazias me faz tremer dum sentimento inédito em seu ineditismo. Quero brincar de estão-todos-mortos-o-mundo-é-só-meu, todos-estão-mortos-menos-eu, mortos-estão-todos-sobrou-só-o-zebedeu.

Sou senhor do mundo. É meu o céu plúmbeo dos meus tempos de Bilac, as nuvens rorschachianas cujas formas sugestivas não me sugerem nada, os postes recobertos de anúncios de encanador, pedreiro e azulejista, os fios que, ameaçando entrar em irreversível caos, carregam as imagens do jogo enquanto guardam pipas enroscadas, as árvores intrusas na feiúra inescapável da rua, a calçada tomada de folhetos de pizzarias, das Casas Bahia, das tevês a cabo, de restos fósseis de garrafas e latas de cerveja indicando que aqui, minutos antes, existia vida, o aslfato cuja virgindade parece eterna, os muros cinzentos ostentando camadas sobre camadas sobre camadas de pichações cujos signos são hieróglifos das subcivilizações urbanas que não tiveram chance de entrar para o mercado de consumo e as fachadas de arquitetura tíbia das casas. Por 45 minutos poderei ousar ter os pensamentos que me apetecerem sem ser azucrinado por aquela detestável sensação dos bilhões de outros. E, jesus christ, o silêncio. Que impossível. Nada além do chirriar de bem-te-vis e sabiás-laranjeiras e dos urros incontidos mas paradoxalmente sóbrios do Galvão Bueno e os uivos abafados como se viessem de outra dimensão de anticlímax da torcida em cada casebre deste Brasil que rima com Plazil.

É o paraíso. Preciso celebrar esta oportunidade de estar só sem me sentir morbidamente solitário. Preciso mamar.

Viro na direção do buteco, inicio mais uma odisseia, não muito certo se terei bravura suficiente para vencer as tempestades à minha frente.

Entupido. O Lacerda mandou instalar um decepcionante e impressionante telão na parede dos fundos para toda a copa. (Dizem que se escreve copa em maiúscula. Perdoem a heresia.)

Abro caminho até minha mesa no canto mais fundo, úmido e sombrio. Está tomada por bárbaros amarelo-esverdeados.

A Soninha arfa, e como, atrás do balcão lavando copos. Dona Jussara vem lá de dentro com bandejas carregadas de acepipes. O Lacerda maneja o bar propriamente dito.

No quadro de avisos vejo um recado. Não estava lá hoje cedo. Abro caminho, me aproximo.


Procura-se

Rapaz caseiro de 14 a 59 anos para aulas particulares para senhora respeitosa e respeitada, elegante, bem-vestida, distinta, dotada de bom-senso, não requer dieta mas boa cozinheira, sofrendo de solidão abissal entre duzentos milhões de torcedores, com gana de poesia algumas vezes por semana depois da meia-noite quando não há  saída, fã de órfãos de meia-idade com propensão ao exílio e à convivência com fantasmas e marcianos, não lê Veja, exímia cozinheira de néctar e ambrosia em fogão a muita lenha, sem experiência em vidas anteriores, acentuado sentido de responsabilidade, disponível para brincar full-time, deixar recado com o Lacerda. Grata.

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