Poema do gueto

Por meio deste poema,
declaro que este dia,
de tão importante,
foi promovido a data.


22 de março é a data da minha 
revelação divina.


Em 22 de março não tirarei folga 
nem beberei nem mais nem menos
do que já bebo nem festejarei
com a família ou amigos,
embora mereça a partir de agora
um X no meu calendário pessoal.


Depois de viver meus últimos
45 anos como o mais satisfeito
dos agnósticos,
eis que constato, não sem algum
espanto,
que deus existe.


O milagre se deu, mais precisamente,
às 10:20 desta nebulosa manhã 
que, sem olhar pela janela ou atentar
para eventuais estranhezas no meu
mundo, me parecia exatamente igual
a todas as outras.


Como é meu costume, acordei,
etc., etc., etc. e etc., 
fiz meu primeiro nescafé, fumei meu
primeiro Free Box azul
e tomei minha primeira decisão,
que talvez sequer decisão seja,
pois que repito os mesmos passos
matinais:


vir para o meu escritório,
sentar em minha cadeira 
giratória, ligar meu compu-
tador, ler meus emails e
passar em meu blog para 
ver se as provocações que
postei ontem suscitaram alguma
reação, por inócua que seja.


Há séculos acordo e celebro esse
ritual. Você sabe, quase todos
gostamos de guardar nossos
hábitos. Certo, hábitos têm tudo de
mecânico, nos induzem à rotina
como se fôssemos programados
para repetir os mesmos hábitos 
numa circularidade ao mesmo 
tempo reconfortante e enjoada.


(Em certa medida há os que precisem. Os que não saibam ou não possam ou não queiram escapar da programação. Os que  talvez tenham nascido, por espantoso  que soe, para robôs.)


Mas, contudo e porém, há algo de fantástico nos meus hábitos, sejam matutinos, noturnos ou intempestivos: eu os sigo religiosamente sabendo que são  facultativos. Vou indo pela inércia à minha vontade e conveniência. Tenho a prerrogativa de parar de repente e mandar meus hábitos, meus rituais, minhas expectativas e tudo que me der na telha pras putas que os pariu.


O melhor que a liberdade em si é a certeza da liberdade. E, por mais poderosos que sejam os
liberticidas, liberdade não  comporta qualificativos.


Mas, retomando os decassílabos 
do meu poema do gueto, eis 
que neste 22 de março de 2011
descubro, não sem algo de espanto, 
que deus existe.


E mais: não só existe mas também
tem um plano -- ou no dizer dos
religiosos -- desígnio. Deus pode,
ó santa mãe, deus pode dirigir meus
passos, controlar minha cabeça e 
ditar meus hábitos até extirpar da 
minha existência a certeza da 
liberdade que pensava ter.


E mais: constatei nesta data 
que, quando deus existe, a 
liberdade não existe. (Sendo 
que o vice-versa do enunciado
eu já o conhecia desde menino.)


E mais ainda: descobri que 
deus tem um nome e um 
rosto e um trabalho: deus 
é blogueiro, veja só.


E determinou que eu escreva no
gueto. O Gueto dos poemas.
Por isso este Poema do gueto.
Por isso estou aqui.

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