Wahrheit

A verdade, não a que você, paranóide, exige que tua mulher, tua mãe e teus filhos confessem a todo custo e a toda hora, sôfrego por dar uma chacoalhada no marasmo destas tardes tepidamente petrificadas, mas a grande, que chauis e gianottis nos cobram os olhos da cara para buscar (talvez já a tenham encontrado e não nos dizem a verdade porque perderiam, ai que delícia, o emprego), morreu na Segunda Guerra com os campos de extermínio nazistas, a verdade profunda e invisível de que a maioria, não poetas, só tem um pálido, vago vislumbre antes de atingir a idade da consciência mecânica do mundo como paraíso das causas e efeitos físicos. 


Criança, era vidrado em Combate que passava às terças na Record, proscrito em casa porque meu pai era avesso a violência, pensando-se humanista crente de que basta fechar os olhos para escorraçar o mal. Criança, ele e mamãe me contavam as agruras que, jovens, passaram quando os "soldados" revolucionários de São Paulo contra Getúlio entravam nas casas at will confiscando aparelhos de rádios e que tais. Foi o mais perto que ele, pobre, nós, pobres refratários a combates, chegamos da distopia duma guerra. 

Às vezes criava coragem e escapulia pro cinema, que então já me dava nos nervos, assistir uma refrega dos evangélicos tiozinhos Sam, o Bem encravado n'alma, contra sanguinários, vociferantes krauts e seus capacetes cobrindo as orelhas, carrancas ferozes, latidos contagiantes que me custaram alguma dificuldade em aprender a língua deles, a mais intrigante, alguns anos depois. E a suástica hipnotizante, sacada genial de Adolf cuja mágica josephs dirceus tentaram arremedar criando uma estrelinha romântica piegas ao gosto desta época inefável em que Lula é exaltado como herói virgílico, cloaca! Aos doze comprei toda uma coleção da Abril sobre os maiores caças da Segunda Guerra, desperdiçava meus dias na carlinga imaginária de Hawker Hurricanes e Spitfires ingleses, Focke Wulfs alemães, Mustangs americanos, Mitsubishis japoneses. 

Adolescente, li Nada de novo no fronte, de Erich Maria Remarque, diluído, insuficiente porque ainda da Primeira Guerra, ardia deitado em casa tentando imaginar o que Remarque teria passado se tivesse pego a de 39, eu, gigante sortudo de poder viver o auge da humanidade, olhando sobranceiro o passado despaupado de sangue e tecnologia e disponilidade de informação, crescendo em sapiência e maturidade num mundo sem igual. 

Li e assisti entusiasmado, apaixonado tudo que pude sobre o instante supremo em que os homens têm de se enfrentar até cair sem poder pedir colo a mamãe, ignorante de que a verdade fora cozida junto com os judeus em Auschwitz. 

Auschwitz e quejandos não estão ao alcance da criança, lalarila-ri-rá, você ainda não pode compreender a morte por farra e o martírio por esporte e a tortura por mero sadismo, delírios que só existem no teu fundão escuro indevassável, inefável e (espera!) moribundo. 

Hoje a vida devia, acho, parar várias vezes por dia, por várias razões, por josephs que saqueiam um país inteiro e ninguém dá bola, por presidentes preguiçosos parasíticos e picaretas pavoneados de pajés com poderes para desviar rios de seus cursos, por juízes que estudam a douta ciência do Direito para encarcerar favelados que roubam um frasco de champu e livram a barra de sarneys manda-chuvas lesa-pátria que contrabandeiam bilhões para ilhas do tesouro, por desgarrados que não têm como escapar à infâmia das nossas esfrangalhadas, sufocantes, fétidas masmorras e por menos, pelo povão irrecuperável, a milhões de anos-luz da civilidade do emprego e da escola, sem saber dividir enquanto se multiplica geometricamente, sem saber sequer que não se deve jogar lixo na rua ou no quintal do vizinho. Olho em volta e não vejo ninguém espantado, estão todos concentrados nas mil e uma utilidades de magníficos celulares que os anestesiam com maravilhas tecnológicas emanadas das pérfidas chaminés das fábricas de ilusões e dos biguemaques. A impotência é cafona, je sais. 

Auschwitz foi uma das infinitas horas em que o mundo devia ter parado. Não parou e pequenos auschwitz vão-se repetindo aqui e ali, grassando subterraneamente e sacudindo o chão sob nossos pés enquanto fazemos de conta que não importa, esquentar a cabeça pra quê? Os africanos que se exterminem à folia pagã, confraternizando dionisíaca, eternamente com animais e deuses da chuva, o massacre de tutsis em Ruanda, Pol Pot, ídolo dos nossos vãos candidatos a ídolo, executando a granel professores, intelectuais, quem usasse óculos, a aniquilação de bósnios pelos sérvios de Milosevic, a destruição dos chechenos pelos russos, as regulares e infalíveis "intervenções" americanas por esse mundão afora sempre que lhes dá na veneta. 

O mundo devia ter parado quando se descobriu que generais de fancaria tinham matado trinta mil pessoas a esmo na Argentina, fazendo dos Pampas um grande campo de tortura e extermínio, estuprando, inventando o fagueiro passatempo de atirar prisioneiros de aviões no mar, cucarachas maricones. 

No belo Batismo de sangue, de frei Betto, que hoje assiste silente enquanto o minúsculo Lula e seus mini-josephs comprovam dia a dia que não passamos todos duma tosca manada de cordeiros rumo ao sacrifício, há uns tremendos duns versos que frei Tito, não poeta, acho, torturado à insanidade por cães de guarda covardes sempre prontos a matar em nome do Estado, talvez só pudesse ter escrito enlouquecido de angústia: quando secar o rio da minha infância secará toda dor. Todas as tardes me deitarei na relva e nos dias silenciosos farei minha oração. Nos dias primaveris, colherei flores para meu jardim da saudade. Assim exterminarei a lembrança de um passado sombrio. Passei meses com essa imagem do rio seco da infância me atormentando, mortificado de terror de que o córrego ralo e insalubre do passado que corre aqui dentro também evaporasse. 

Regozijem-se, brasileirinhos e brasileirinhas da classe média baixa para cima, de ter nascido no berço esplêndido, tirado a loteria de não se verem sem mais nem menos num barracão no meio da neve, vinte graus abaixo de zero, vivendo de água suja, trabalhando além da exaustão, cheirando no ar, abúlicos, o que sobrou dos cadáveres nos fornos, regozijem-se de não viverem num barraco de quatro metros quadrados, tentando dormir sob o ruído das ratazanas em cima do fogão e da pia, sob os alaridos tresloucados dos anúncios das Casas Bahia no meio duma favela controlada por traficantes nascida do nada em cada interstício da capital. 

Alguns saíram de Auschwitz mais ou menos lúcidos. Alguns, como Primo Levi, puderam sublimar, que sei eu?, a temporada no inferno, Rimbaud não tinha a menor ideia, pobrezito, e nos deixaram pequenas peças de beleza. Alguns sobreviveram para depois se arrepender da capacidade de sobrevivência. A alguns, o rio da infância insuportavelmente secou. Para o zé-ninguém atolado no chóping, olho vidrado, coração apodrecido, a verdade é um elástico a morrer e ressuscitar cíclica, imperecivelmente.

Ist das ein Mensch? 

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